Uns morrem do
coração, outros pelo curto circuito dos acidentes e outros de câncer, dentre
tantas possibilidades de bater no andar de cima. Sorte a nossa que não sabemos
nem o dia, nem a hora. Foram sete anos de colégio em Porto Alegre. Há um ano
retomamos contato, depois de quatro décadas de nossa formatura. Desde então nos
encontramos de vez em quando, não só para recordar passagens divertidas como
também para trocar experiências. Um dos nossos convidou os demais para celebrar
seu aniversário na zona sul do estado. Aprendemos a admirar sua diplomacia,
sempre contornando possíveis conflitos, qualidade que colocou em suas mãos a
coordenação de importante programa científico do país. Tão logo recebi o
comunicado confirmei que iria. Disse mais: só faltaria com atestado de óbito
...
Na sexta-feira à
noite, quando rumávamos para São Lourenço, para no sábado comparecer na reunião
de amigos em Pelotas, eis que uma capivara cruzou nosso caminho. Impossível
distingui-la, sem luz alta, a menos de uns dez a quinze metros. No susto pensei
que fosse uma ovelha e não fui mais que um passageiro no lugar do motorista.
Não tive tempo para frear, desviar ou mesmo gritar. O impacto destruiu a parte
baixa do frontal do carro, incluindo o radiador. O breu era total, só cortado
pelos faróis na rodovia. Era um trecho com acostamento pífio e a lufada dos
veículos mais pesados fazia o triângulo de segurança decolar.
Dispensável
dizer que os sinais de socorro foram ingénuos: ninguém sequer desacelerou. Este
é o preço em um país com elevada criminalidade. Ninguém para. Nossa filha de
oito anos dormia, ignorando que estávamos num mato sem cachorro. Liguei para o
telefone de emergência e pedi que entrassem em contato com a concessionária da
rodovia. O carro foi guinchado até um restaurante, o mesmo onde cinco décadas
atrás nossa excursão do Ginásio São João Batista parou. Tinha dez anos, lembro
que era uma noite gelada e que desembarquei estremunhado.
Não entrarei em
detalhes porque o assunto é aborrecido. A seguradora completou o socorro e com
um atraso de quatro horas chegamos no destino. Eram três da manhã. Dormi menos
de quatro horas e pulei da cama. Não é todo dia que se revê colegas depois de
mais de quarenta anos. Tomei um café preto, pulei na bicicleta e pedalei com
vigor até a rodoviária. Quando me aproximava, a cinco minutos da partida do ónibus, me emocionei. Aquela pobre capivara não era um atestado de óbito e duas
horas mais tarde estaríamos reunidos num restaurante. Como já nos comunicávamos
num grupo da rede social, foi como se o tempo não houvesse passado.
Com os colegas
de internato relembramos algumas cenas tão bizarras quanto reprováveis. O
alojamento da 1ª. Companhia era enorme, com algo em torno de quarenta alunos.
Não havia quartos, apenas armários individuais de aço separavam grupos de
camas. Mais ou menos dez leitos por trecho. A cada dia um sargento pernoitava
no alojamento, em um quarto acanhado, no rumo do banheiro. As luzes eram
apagadas às 22 horas e o silêncio era obrigatório.
Havia pelo menos
dois sargentos caricatos, mas um era particularmente malquisto: foi apelidado
de Satanás. Magro, com jeitão de poucos amigos e cabelo escovinha, parecia
deleitar-se em relatar nossas infrações, que podiam custar uma detenção em
final de semana ou no mínimo uma conversinha pouco agradável com o capitão que
comandava a companhia. Para quem gostava de riscos o desafio era gritar Satanás
no ambiente em que ele estivesse, sem ser descoberto. Certa noite um gaiato
gritou a plenos pulmões. Satanás se colocara, esquivo como um gato, no “quarto”
vizinho, trepado no espaldar de uma cama para apanhar em flagrante o incauto.
Era difícil batê-lo ... Eis que, dias depois, dois dos mais ousados, que
dormiam junto à parede, em “quartos” distantes, estenderam um barbante entre
suas camas para que pudessem, com um puxão de peixe fisgado, informar que
Satanás estava em suas águas ... O pobre sargento esgueirava-se de uma ponta a outra
do alojamento: quando chegava, o grito ostensivo partia da outra extremidade. Naquela
noite Satanás perdeu de goleada, vitimado pelo ardil.
Brindamos nosso
encontro com histórias. Só perderia mesmo o encontro com atestado de óbito ...
Morreremos de algo, nem que seja do câncer chamado tempo, que um dia ajusta as
contas até com os longevos. Mas não morreremos de tédio, nem de indiferença. Que
um dia lembrem com alegria de nossas pobres e fraternas almas. Será perfeito se
for à mesa, de preferência ao som de Adios
Nonino e um bom vinho.
J. B. Teixeira |
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