As horas avançam
na madrugada. Dentro de minutos irei pra casa, lanterna à mão. Indiscreta,
revela os ágeis e pequeninos jacarés de parede, as lagartixas, a ziguezaguear
atrás de insetos e refúgio. Paralisadas pelo facho de luz, parecem presas
fáceis. Nas horas vagas, permeado com outras obras mais digestivas, sigo a
lutar com um livro do argentino José Ingenieros. Escreve de forma densa, com exaltado
senso crítico, enchendo páginas e mais páginas com reflexões que parecem, quase
todas, aforismos encadeados. A linguagem não flui, escoa como lava e a leitura
parece avançar com a velocidade de crescimento de estalactites. Algumas de suas
tiradas são notáveis e parecem descrever ora a mim mesmo, ora a outros tantos
que conhecemos. O nome da obra denuncia a falta de melhores atributos: “O homem medíocre”.
Pensei em alinhar
frases deste autor para, só então, depois de uma fuzilaria de palavras, revelar
sua origem. Algumas dão o que pensar: “A
mediocridade é mais contagiosa que o talento (...) Seriam capazes de enviar em
comissão um lobo e um cordeiro,
surpreendendo-se, depois, sinceramente, de ver o lobo voltar sozinho (...)
Povoam a sua memória com máximas de almanaque, e ressuscitam-nas de vez em
quando como se fossem sentenças (...) O homem medíocre que se aventura à lição
social tem apetites urgentes: o êxito. Não suspeita da existência de outra
coisa – a glória – almejada somente pelos caracteres superiores”.
Pois tomo o mote
do homem medíocre para expandi-lo aos acontecimentos lastimáveis de Paris, que
viu arder Notre Dame. Antes de tudo viajo no tempo e recordo os conselhos que
ouvi antes de ir a Portugal pela vez primeira. Me disse um conhecedor das
coisas de além-mar que prestasse atenção nas Igrejas portuguesas. Modestas por
fora, possuem em seu interior toda a demonstração de carinho pelas coisas do
Alto. É verdade. Verdade esta que podemos confirmar também no Brasil, em
cidades como Salvador e Ouro Preto. O que a pedra bruta, por vezes talhada sem
grande apuro na fachada, fica a dever, ricos e devotos interiores fazem
esquecer, convocando os homens à introspecção, à consciência, à oração.
Notre Dame não era exatamente isto. Seu exterior era muito mais
exuberante que seu devastado interior, castigado pela bestialidade que também compôs
a Revolução Francesa, liberados os baixos instintos e a perseguição à religião,
notadamente o cristianismo. O interior da catedral foi dilapidado, vejam só, em
nome da Razão. Naquela França não faltaram perseguidores da Igreja, como
Voltaire e Diderot, com seu embuste literário “A religiosa”. Quanto cinismo, quanto ódio.
Pois mal eram
lançadas ao mundo as tristes imagens do fogo a consumir o quase milenar templo,
abundavam na rede social fotos de turistas diante daquele monumento consagrado
à Nossa Senhora. É possível que alguns desconheçam que em seu interior foi
coroado um rei e que seus famosos vitrais filtraram a luz do dia em que
Napoleão tomou a coroa das mãos do Papa Clemente VII para autocoroar-se. Talvez
desconheçam que o interior de Notre Dame teve estátuas decapitadas, altares
conspurcados e serviu até mesmo de depósito. Justo na católica França prosperou
o agnosticismo, o relativismo, que haveria de ressurgir na revolução russa com
similar violência. A destruição de Notre Dame pelo fogo é metáfora modesta para
a destruição espiritual da Europa, de proporção catastrófica.
Ligo então a
perseguição jacobina na França às centenas de aforismos de Ingenieros, cujo
talhe espiritual inclui ataques aos Jesuítas. Como é engraçada a saga dos
Jesuítas. Nascidos na Contrareforma, têm obras notáveis mundo afora. Como aqui
mesmo, no Rio Grande do Sul, em suas reduções, cantadas em verso e prosa pelo
cancioneiro gaudério. É frequente, porém, a omissão de seus méritos. As
reduções foram um dos grandes exemplos da história? Sim, mas seus idealizadores
nem sempre têm sua obra exalçada.
Pois Ingenieros
cai na mesma vala, dando aqui e acolá umas estocadas nos Jesuítas. Podem ser
meras coincidências, fruto da imaginação de quem paralisa lagartixas com
lanterna, quando dorme a vizinhança e boa parte do nosso pequeno mundo parece
ter deixado de existir. Fotos e mais
fotos de Notre Dame, que poderiam ter como legenda “Estive aqui”.
Até agora não li nenhum registro na linha do “Rezei em Notre Dame”. É uma pena. Num continente que precisa ser
recristianizado, o fogo que consumiu parte da história talvez possa reavivar
alguns valores transcendentes que a própria França deixou no esquecimento.
J. B. Teixeira |
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