Páginas

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Perda maior

As horas avançam na madrugada. Dentro de minutos irei pra casa, lanterna à mão. Indiscreta, revela os ágeis e pequeninos jacarés de parede, as lagartixas, a ziguezaguear atrás de insetos e refúgio. Paralisadas pelo facho de luz, parecem presas fáceis. Nas horas vagas, permeado com outras obras mais digestivas, sigo a lutar com um livro do argentino José Ingenieros. Escreve de forma densa, com exaltado senso crítico, enchendo páginas e mais páginas com reflexões que parecem, quase todas, aforismos encadeados. A linguagem não flui, escoa como lava e a leitura parece avançar com a velocidade de crescimento de estalactites. Algumas de suas tiradas são notáveis e parecem descrever ora a mim mesmo, ora a outros tantos que conhecemos. O nome da obra denuncia a falta de melhores atributos: “O homem medíocre”.

Pensei em alinhar frases deste autor para, só então, depois de uma fuzilaria de palavras, revelar sua origem. Algumas dão o que pensar: “A mediocridade é mais contagiosa que o talento (...) Seriam capazes de enviar em comissão  um lobo e um cordeiro, surpreendendo-se, depois, sinceramente, de ver o lobo voltar sozinho (...) Povoam a sua memória com máximas de almanaque, e ressuscitam-nas de vez em quando como se fossem sentenças (...) O homem medíocre que se aventura à lição social tem apetites urgentes: o êxito. Não suspeita da existência de outra coisa – a glória – almejada somente pelos caracteres superiores”.

Pois tomo o mote do homem medíocre para expandi-lo aos acontecimentos lastimáveis de Paris, que viu arder Notre Dame. Antes de tudo viajo no tempo e recordo os conselhos que ouvi antes de ir a Portugal pela vez primeira. Me disse um conhecedor das coisas de além-mar que prestasse atenção nas Igrejas portuguesas. Modestas por fora, possuem em seu interior toda a demonstração de carinho pelas coisas do Alto. É verdade. Verdade esta que podemos confirmar também no Brasil, em cidades como Salvador e Ouro Preto. O que a pedra bruta, por vezes talhada sem grande apuro na fachada, fica a dever, ricos e devotos interiores fazem esquecer, convocando os homens à introspecção, à consciência, à oração.

Notre Dame não era exatamente isto. Seu exterior era muito mais exuberante que seu devastado interior, castigado pela bestialidade que também compôs a Revolução Francesa, liberados os baixos instintos e a perseguição à religião, notadamente o cristianismo. O interior da catedral foi dilapidado, vejam só, em nome da Razão. Naquela França não faltaram perseguidores da Igreja, como Voltaire e Diderot, com seu embuste literário “A religiosa”. Quanto cinismo, quanto ódio.

Pois mal eram lançadas ao mundo as tristes imagens do fogo a consumir o quase milenar templo, abundavam na rede social fotos de turistas diante daquele monumento consagrado à Nossa Senhora. É possível que alguns desconheçam que em seu interior foi coroado um rei e que seus famosos vitrais filtraram a luz do dia em que Napoleão tomou a coroa das mãos do Papa Clemente VII para autocoroar-se. Talvez desconheçam que o interior de Notre Dame teve estátuas decapitadas, altares conspurcados e serviu até mesmo de depósito. Justo na católica França prosperou o agnosticismo, o relativismo, que haveria de ressurgir na revolução russa com similar violência. A destruição de Notre Dame pelo fogo é metáfora modesta para a destruição espiritual da Europa, de proporção catastrófica.

Ligo então a perseguição jacobina na França às centenas de aforismos de Ingenieros, cujo talhe espiritual inclui ataques aos Jesuítas. Como é engraçada a saga dos Jesuítas. Nascidos na Contrareforma, têm obras notáveis mundo afora. Como aqui mesmo, no Rio Grande do Sul, em suas reduções, cantadas em verso e prosa pelo cancioneiro gaudério. É frequente, porém, a omissão de seus méritos. As reduções foram um dos grandes exemplos da história? Sim, mas seus idealizadores nem sempre têm sua obra exalçada.

Pois Ingenieros cai na mesma vala, dando aqui e acolá umas estocadas nos Jesuítas. Podem ser meras coincidências, fruto da imaginação de quem paralisa lagartixas com lanterna, quando dorme a vizinhança e boa parte do nosso pequeno mundo parece ter deixado de existir. Fotos  e mais fotos de Notre Dame, que poderiam ter como legenda “Estive aqui”.

Até agora não li nenhum registro na linha do “Rezei em Notre Dame”. É uma pena. Num continente que precisa ser recristianizado, o fogo que consumiu parte da história talvez possa reavivar alguns valores transcendentes que a própria França deixou no esquecimento.

J. B. Teixeira



Sem comentários:

Enviar um comentário