Jean Vanier fotografado em Agosto de 2015, em Taizé. Foto © Filipe Teixeira |
Ao terminar o livro Verdadeiramente Humanos, Jean Vanier escrevia: “Somos todos chamados a percorrer o caminho que nos leva ao perdão se pretendermos tornar-nos verdadeiramente humanos, superar a divisão e a opressão e trabalhar em prol da paz. (…) Não coloquemos todavia a nossa mira demasiado alta. Não temos que ser salvadores do mundo! Somos simplesmente seres humanos, envoltos em fraqueza e em esperança, chamados a, todos juntos, mudar o nosso mundo, um coração de cada vez.”
Trazida por Alice Caldeira Cabral num texto no 7MARGENS sobre os últimos livros de Jean Vanier publicados em Portugal, a citação recorda que foi um coração de cada vez que Jean Vanier quis ajudar a transformar. O fundador das comunidades d’A Arca e co-fundador (com Marie-Hélène Mathieu) do movimento Fé e Luz, que sempre procuraram promover o acolhimento de pessoas com deficiência intelectual morreu nesta terça-feira, 7 de Maio, em Paris, às 2h10 da manhã (menos uma hora em Lisboa). Tinha 90 anos. Junto de si, estavam alguns amigos mais próximos, de acordo com o comunicado do Fé e Luz, que deu a notícia.
“Jean teve uma vida duma imensa fecundidade. Marcou a história d’A Arca e de Fé e Luz, assim de um grande número de pessoas como nós. Queremos dar graças por tudo isto. Jean enviou-nos todos em missão, faremos o melhor possível para responder ao seu desejo profundo para Fé e Luz: que a Boa Nova seja anunciada aos pobres”, diz o texto do Fé e Luz que anuncia a morte, assinado por quatro responsáveis do movimento: Marie-Hélène Mathieu, co-fundadora do Fé e Luz com Jean Vanier, Hoda Elturk, Raul Izquierdo Garcia e Corinne Chatain.
A história de Jean Vanier com o Fé e Luz começou no final de uma peregrinação ao santuário francês de Lourdes, na Páscoa de 1971. Jean e Marie-Hélène, recorda o comunicado do movimento, quiseram responder ao sofrimento de uma família que tinha sido excluída da peregrinação, por causa da deficiência intelectual dos seus filhos. Mas, como o próprio recordava numa entrevista que lhe fiz em Agosto de 2015 para o programa Setenta Vezes Sete, “estas pessoas estão próximas de Deus, porque são pessoas do coração e não da cabeça”.
Foi essa convicção que o levou há quase 55 anos (em Agosto de 1964), a convidar duas pessoas com deficiência intelectual para viver com ele numa pequena casa de Trosly-Breuil (região do Oise, uma hora a nordeste de Paris) que batiza como A Arca, partilhando “uma vida simples feita de entreajuda e de amizade”. Mais tarde, recordará: “Visitei asilos e descobri um vasto mundo de sofrimento que ignorava absolutamente. Tinha conhecido um mundo de eficácia na marinha e depois um mundo intelectual durante os meus estudos académicos.”
Ajudar sobreviventes dos campos de concentração
Antes da criação d’A Arca e do Fé e Luz, de facto, Jean Vanier já tinha feito outras experiências. Nascido numa família católica canadiana a 10 de Setembro de 1928, em Genebra (o seu pai era diplomata na Sociedade das Nações), alistou-se aos 13 anos no Colégio da Royal Navy em Dartmouth em plena II Guerra Mundial. Em 1945, quando o seu pai era embaixador do Canadá em Paris e a mãe delegada da Cruz-Vermelha, ajudou a acolher sobreviventes dos campos de concentração em Paris, experiência que o marca profundamente.
George Vanier, o pai, é nomeado Governador Geral do Canadá em 1959 e, aos 23 anos, Jean sai da marinha “para seguir Jesus e trabalhar para a construção da paz”. Em 1962, completa o doutoramento em Filosofia. Entretanto, passa um ano em Fátima vivendo quase como eremita, numa pequena casa ao lado da fraternidade das Irmãzinhas de Jesus, reflectindo sobre o seu futuro.
Na pequena aldeia de Trosly, rapidamente a casa se tornará pequena para acolher os voluntários que procuravam ouvi-lo, conversar ou ouvir as suas conferências ou partilhar momentos com as pessoas com deficiência.
Os lares d’A Arca multiplicam-se então não só por França como por todo o mundo – actualmente há 154 comunidades em 38 países, enquanto o Fé e Luz está presente em 85 países de todos os continentes com 1450 comunidades de encontro, em que as pessoas com deficiência e os seus familiares se reúnem regularmente.
Para lá d’A Arca e do Fé e Luz, dizia o comunicado do movimento, Jean Vanier “inspirou a criação de numerosas associações e influenciou milhares de pessoas no mundo, ilustres ou anónimas”. De sorriso franco e aberto, rosto tranquilo, era um “infatigável artesão da paz” que “nunca deixou de dar testemunho sobre a riqueza da fraternidade com os mais frágeis e de desejar devolver às pessoas com deficiência intelectual a sua dignidade e o seu lugar na sociedade e na Igreja”.
“Uma decisão exemplar, uma marca de sabedoria”
Além das quatro dezenas de livros publicados, alguns dos quais disponíveis em português, Jean colocava ao serviço de todos mas sobretudo das pessoas com deficiência intelectual “o poder da sua eloquência, da sua inteligência, da sua força espiritual nos círculos religiosos ou laicos, profissionais ou políticos nos quatro cantos do mundo”.
Há já duas décadas que Jean Vanier se tinha retirado de todas as tarefas executivas d’A Arca e do Fé e Luz. “Uma decisão exemplar para um fundador e uma grande marca de sabedoria”, diz o comunicado de imprensa do Fé e Luz. “Desde essa altura tem-se dedicado à sua missão de testemunha da fraternidade com os mais humildes. Recebia na sua comunidade numerosos visitantes do mundo inteiro de todas as origens e de todas as condições.”
Até ao final do dia de terça-feira, o funeral não tinha ainda data marcada, mas deverá ser filmado e transmitido em directo via internet. Sabe-se que, cumprindo um desejo expresso pelo próprio Jean Vanier, as exéquias se realizarão na intimidade dos residentes na pequena comunidade de Trosly(onde residem actualmente mais de 60 pessoas), de alguns amigos próximos e vários representantes da Arca e do movimento Fé e Luz. Mais informação pode ser consultada na página da Arca na internet.
O mais importante, escrevia Jean Vanier numa frase reproduzida na página d’A Arca na internet, “não é fazer coisas para as pessoas que são pobres e sofrem, mas entrar em relação com elas e ajudá-las a encontrar confiança em si mesmas e descobrir os seus próprios dons”.
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