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domingo, 9 de junho de 2019

Gianfranco Ravasi: “O problema não é se Deus existe. É saber qual Deus”

O cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontífício para a Cultura, do Vaticano, fotografado a 15 de Abril no seu gabinete, em Roma. Fotografias © Ana Baião/Expresso
 
O presidente do Conselho Pontifício para a Cultura é uma das mais respeitadas vozes do Vaticano. Numa conversa sem filtro fala dos abusos sexuais na Igreja e da pequenez dos políticos, e faz revelações sobre o diaconato feminino. Fala ainda de sucesso e fé cristã, sucessos e insucessos de Jesus e do Papa Francisco, do insucesso da Igreja Católica junto das mulheres e dos jovens ou das razões do insucesso das formas contemporâneas de fazer política.

Falta à política actual pensar em grande

O cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, do Vaticano, diz que o maior problema que a Igreja Católica afronta hoje é a distância dos jovens em relação à instituição. Mesmo as iniciativas recentes – um sínodo de bispos e um documento do Papa sobre o tema – não conseguem tocar as questões fundamentais que o problema coloca, lamenta.
O relativo insucesso do catolicismo junto das gerações mais novas é um dos temas desta conversa com o cardeal Ravasi, que [esteve] dia 7, em Braga, a falar sobre a fé como ponte entre religiões, culturas e povos, numa iniciativa intitulada Sucess Full Pensamento. Dois pontos de partida para falar sobre o sucesso e a fé cristã, os sucessos e insucessos de Jesus e do Papa Francisco, as oposições que este enfrenta no interior da Igreja e o papel das mulheres no catolicismo – outro insucesso católico, a propósito do que Ravasi fala do que pode ser uma pequena revolução: a instauração do diaconato, um ministério paralelo ao sacerdócio, que as mulheres também poderiam integrar.
Uma hora depois de terminada a entrevista, e enquanto o cardeal Ravasi homenageava em Roma o compositor e maestro Ennio Morricone (que esteve em Lisboa segunda-feira, dia 6), a catedral de Notre-Dame de Paris ardia, simbolizando as feridas já abertas no coração de França e da Europa. A coincidência permitiu ainda acrescentar uma pergunta sobre o significado do acontecimento.

7M – É um dos cardeais mais conhecidos, reconhecido pelo que escreve e diz, amigo de artistas, escritores e gente famosa, procurado por jornais e televisões… Considera-se uma pessoa de sucesso?
CARD. GIANFRANCO RAVASI (G.R.) – No contexto actual é difícil conseguir ser uma pessoa de sucesso através da reflexão profunda, do estudo, do compromisso com a cultura. A tendência dominante está ligada sobretudo a duas leis fundamentais: a primeira é a comunicação acelerada. Pensemos no símbolo por excelência que é o telemóvel. A comunicação chega através de frases que não têm uma subordinada; são frases simples, essenciais – o que também é um valor, porque nos leva à simplicidade. Mas é também um grande limite: a pesquisa profunda, o aprofundamento, requerem uma frase com derivadas, porque elas permitem articular o pensamento, fazendo-o, no seu conjunto, como uma arquitectura.
A própria música contemporânea, objecto de culto por parte dos jovens, é ritmo por excelência. Um ritmo dual, reiterado. Tanto é verdade que muitas vezes é o som da bateria que reflecte o batimento cardíaco. Por contraste, a grande música – a de Bach, por exemplo – é uma catedral, na qual a uma unidade musical inicial se segue uma série de pináculos, tal como numa catedral, com um vértice e, no final, de novo aparece a célula inicial. É um discurso complexo.

7M – E mais difícil de entender…
G.R. – Essa é a primeira dificuldade: a simplificação é um valor, porque permite tantas vezes perceber o coração dos problemas, mas há o risco de, pelo contrário, ser uma simplificação que vai ao quase vazio, à inconsistência, à superficialidade, à banalidade, mesmo à vulgaridade e à agressividade – e por fim, algumas vezes, à estupidez…
A segunda é aquela que, na cultura contemporânea, exige o uso da imagem. Também isto é muito positivo mas leva, progressivamente, à perda da capacidade de leitura e meditação…

7M – E também do sentido da escuta?
G.R. – Exacto, era o que ia dizer. No final, também à incapacidade de escuta. Eu preocupo-me em encontrar uma linguagem adaptada a estas duas exigências: o tweete a imagem, o símbolo. Mas compreendo que não posso renunciar a vinte séculos ou mais de história, da cultura clássica e da cultura cristã, extremamente ricas e complexas. É por isso que só tenho sucesso até um certo ponto.
Creio que também os jovens, se forem guiados, são capazes de entrar nesta minha linguagem. Mas devo igualmente adaptar-me, entrar em sintonia com eles. E eles exigem, primeiro, que faça frases breves – escrevo todos os dias dois tweet– e que me interesse pela sua música. Mesmo se, para os meus ouvidos, é uma coisa completamente diferente…

“Essa é a minha missão: procurar, mesmo nas novas expressões, a humanidade sempre presente: a dor, a felicidade, a alegria, o desespero, o amor, a necessidade de justiça, a liberdade…”

7M – Mas no Avvenire ou no Il Sole 24 Ore escreve muitas vezes sobre músicos jovens. Recordo a sua crónica quando morreu Amy Winehouse: descobre sempre os gritos ou a espiritualidade que se exprimem nas músicas das novas gerações.
G.R. – Essa é a minha missão: procurar, mesmo nas novas expressões, a humanidade sempre presente: a dor, a felicidade, a alegria, o desespero, o amor, a necessidade de justiça, a liberdade são realidades universais e eternas da humanidade, que se expressam hoje de maneira totalmente diversa. Por isso é importante conseguir compreender também estas linguagens. Mas não a tal ponto que se possa dizer que tenho sucesso junto deles.
Entre o mundo académico ou um público de uma certa cultura, arrisco ter sucesso. Tê-lo com os jovens é muito mais difícil. Eles são nativos digitais, eu sou um migrante que fala uma língua que não é a deles; compreendo-a, mas não se consegue intuir completamente o seu mundo. Mas o esforço que faço vai nesta linha.

7M – Como exegeta bíblico, admito que possa dizer que o sucesso no Evangelho é o modelo das Bem-Aventuranças, uma proposta ao contrário do modelo de sucesso contemporâneo. Como compaginar estas duas realidades?
G.R. – Numa sociedade e numa cultura como esta – que não é apenas a cultura juvenil, mais difusa, caracterizada pela famosa teoria da modernidade líquida, de [Zygmunt] Bauman, como inconsistente, procurando o mais possível estar à superfície –, a função da verdadeira cultura e de todas as religiões é a de ser um espinho na carne, ou seja, qualquer coisa que provoca. Dizia [Søren] Kierkegaard, grande filósofo dinamarquês do século XIX: “A missão da filosofia é a mediação. Mas a missão do cristianismo é o paradoxo.” Isso são as Bem-Aventuranças, a provocação.
Falar de vida e de morte é necessário. Também porque esta cultura não quer considerar a morte – pensemos no trans-humanismo ou no pós-humanismo, que querem uma imortalidade física –, nem a finitude, a culpa ou o pecado. Assim, é uma forma de provocação que talvez seja a missão do cristianismo, ainda mais na convicção de que agora somos minoria. Somos maioria pelos números, quantitativamente, mas como presença eficaz, fecunda, geradora, somos minoria. Por isso é necessário, a esta luz, repropor a mensagem.

7M – De que modo?
G.R. – Dou um exemplo concreto e até provocador: as questões sexuais ou de bioética. Uma corrente, sobretudo no mundo protestante e estadunidense em particular, para conseguir que a Igreja tivesse ainda um pouco de espaço, aceitou quase tudo, do ponto de vista sexual e da bioética. Claro que há uma evolução que devemos considerar mas, no fim, quem escolheu esse caminho, não conservou a fé cristã. Pelo contrário: a Igreja Luterana da Suécia não consegue já fazer uma sondagem sobre a participação no culto dominical – que não é a fé, mas é um sinal dela – porque a percentagem de pessoas [que nele participam] é enormemente baixa.
Por isso, tantas vezes, a voz do Papa Francisco – pensemos no problema dos refugiados no Mediterrâneo ou no tema da misericórdia –, é provocatória, porque a sociedade actual procura não falar desses temas. Pensemos no que se passa em Itália e na Europa, com movimentos soberanistas e xenófobos. Alguns grupos católicos integralistas preferem dizer que não se deve falar dessas questões, mas apenas de espiritualidade. Mas o evangelho é, por sua natureza, provocação. Neste sentido, creio que o Papa Francisco tem decididamente mais sucesso – se queremos medir o sucesso – com declarações deste género do que simplesmente cedendo à mentalidade corrente.
Devemos também ter em conta a evolução: não estamos já numa república cristã nem num estado islâmico no qual a carta constitucional é o Alcorão e o código de direito canónico é o código de direito civil e penal. O cristianismo reconhece a secularidade, isto é, a separação: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”

“Cito muitas vezes uma frase de um autor americano, fortemente anti-cristão, Henry Miller, autor do Trópico de Câncer: ‘A arte, como a religião, não servem para nada, a não ser para mostrar o sentido da vida.’ É isto que devemos procurar.”

7M – Nesse quadro, que espiritualidade pode propor o cristianismo?
G.R. – Para ver o quanto seja importante propor temas fortes de espiritualidade, de religiões e de fé, devemos ter em conta um dado, tal como o formulava Wittengstein, no prefácio do Tratado Teológico-Filosófico, a obra mais importante deste filósofo austríaco do século passado: “O que eu queria demonstrar eram os contornos de uma ilha. O que descobri no final são as fronteiras do oceano.”
O que ele quer dizer é que o homem é finito. Se eu caminho na costa de uma ilha e só olho de um lado, tenho apenas o quadro imediato. Mas se olhar com os dois olhos, vejo o oceano que bate em mim. Esta é a missão também da cultura: fazer compreender que há sempre um “para lá de” e uma “outra” coisa, para lá da pura simples existência física e psíquica. É a interrogação, o ir além de, que para o cristão e os crentes é a transcendência, para outros será o mistério do universo: porque estou aqui?
Quando alguém já não faz perguntas e vive o simples quotidiano, é claro que se começa a perder… Cito muitas vezes uma frase de um autor americano, fortemente anti-cristão, Henry Miller, autor do Trópico de Câncer: “A arte, como a religião, não servem para nada, a não ser para mostrar o sentido da vida.” É isto que devemos procurar.

7M – Falou da morte e dos limites. No livro Suportar o Peso da Dor (ed. Paulus), escreve sobre personagens do Antigo Testamento e cita Susan Sontag: “A doença é a metáfora de uma experiência humana mais radical”. Isto contrasta com a experiência contemporânea, em que o sofrimento e a morte não existem. Devemos devolver essa experiência ao quotidiano?
G.R. – Devo dizer que, não obstante todo o esforço para afastá-las e escondê-las, a morte, a dor e o sofrimento estão ininterruptamente presentes. Primeiro, porque o temor atinge sempre alguém que amamos ou a dor entra na nossa vida. Depois, porque a televisão nos traz a todo o instante as guerras, os acidentes… a morte, na realidade, está sempre presente, introduz-se sempre na existência. Mas talvez com o objectivo de introduzir uma visão da morte e da dor que procura explicá-la – não resolver mas explicar.
Toda a história da humanidade, tendencialmente, se empenhou em explicar o mistério do mal. Se não houvesse o mal, três quartos da literatura não existiria…

7M – Isso inclui a finitude e o sofrimento…
G.R. – Sim, tudo, o mal global: a culpa, a finitude, a responsabilidade; de um só golpe, ficaríamos sem todo o Dostoiévski, desde o Crime e Castigo aos Irmãos Karamazov. Pensemos também que a teologia nasceu em época remota (a palavra foi inventada por Platão, para dizer o discurso sobre Deus) como teodiceia, ou seja, a tentativa de justificar Deus perante o mal.
Aqui insere-se a acusação para eliminar Deus. Lembremos Camus, n’A Peste, em que o doutor Rieux retoma uma frase de Ivan, dos Irmãos Karamazov: “Enquanto houver na terra uma criança que morre assim, eu não acreditarei nunca em Deus.” Por isso, a função da teologia é essa. E foram construídas imensas visões, mesmo sobre a morte: pensemos em tudo o que Platão escreveu para tentar demonstrar racionalmente a imortalidade da alma, na base da sua espiritualidade, não-materialidade e, portanto, não-divisibilidade.
Não obstante o esforço por não fazer entrar a morte e a doença [na nossa vida], elas apresentam-se ininterruptamente em palco. E aí deverão estar a religião e a cultura. Porque muitas vezes as pessoas interessam-se por banalidades: a droga é a tentativa de anular as perguntas sobre o sentido da vida e da morte, por prazer e gozo imediato. A missão das religiões, se for menos do que isso, não serve para nada.

7M – E é também isso que diz a frase de Susan Sontag…
G.R. – Sim, a doençacomo metáfora é o título, como símbolo de uma marca existencial. O doente compreende que não vive [apenas] uma experiência biológica: o médico não pode ser apenas aquele que cura o doente farmacologicamente, terapeuticamente, é aquele que deve estar próximo, também.
Quando Susan Sontag estava doente de cancro e de manhã vinha a equipa com o professor e os alunos e enfermeiros, o médico explicava tudo sobre a doente. Ela comentava que só a posição já era decisiva: eles estavam de pé e ela na posição do morto. “Estávamos já numa experiência radicalmente diferente.” É por isso que o médico e o padre devem curvar-se, devem estar próximos; isso não chega com a medicina ou a cirurgia, vem com uma experiência de tipo cultural, espiritual e religioso…

7M – E também física, através do toque…
G.R. – Sim, e física, do estar próximo. Ainda que, para o doente, não seja fácil, porque é o momento terrível em que ele conta a sua doença… Voltamos ao que já falámos, à escuta…

“Pode dizer-se que agora, socialmente, como dizia Woody Allen, Deus está menos bem de saúde…”

7M – Num outro livro, Uma Breve História da Alma (ed. Dom Quixote), comenta a frase de Jesus “quem quer salvar a sua vida, perdê-la-á”, para dizer: “A escolha de Jesus está entre uma vida meramente exterior e superficial, e uma vida ‘eterna’, sustentada pela ‘imagem’ de Deus.” Deus já foi uma ideia de sucesso e já não o é mais?
G.R. – Sim, pode dizer-se que agora, socialmente, como dizia Woody Allen, está menos bem de saúde… O problema, em última análise, não é se Deus existe ou não. Nos nossos dias, cada vez mais, a pergunta é “qual Deus?” Pensemos nos ídolos que são adorados: do desporto, do cinema, da canção… Arranjámos muitos ídolos:o bem-estar, a riqueza, o poder, o sucesso… Houve sempre ídolos, mas sempre muito frágeis, na verdade. Há também a magia, o desejo de descobrir qualquer coisa de obscuro – veja-se quanto fez também a psicanálise neste sentido, para procurar introduzir novas formas de divindade no interior da cultura contemporânea. O “eu” torna-se quase o “não-Deus”. O homem teve sempre necessidade de olhar para lá de si – queira ou não queira, deseja-o sempre.
Qual é, então, a visão autêntica? É a que o cristianismo deve propor: o verdadeiro Deus. Neste ponto, as religiões começam a tornar-se diferentes entre si. O Deus da Bíblia é diferente do do islão. Sendo o mesmo, a sua manifestação, a sua epifania – o Deus da transcendência absoluta, puramente Outro – é diferente da do cristianismo. Tanto é verdade que há um dito da tradição islâmica que diz: Deus é como o sol, o homem é uma poça de água; às vezes, a poça de água reflecte o sol, mas é sempre uma poça de água.
7M – Essa é uma diferença substancial?
G.R. – Na visão cristã, que já começa no Antigo Testamento, Deus é também transcendente, mas não se revela no céu, não está privado da realidade e fechado no seu horizonte dourado e supremo, mas revela-se no interior dos acontecimentos da história. O Êxodo da escravatura [dos judeus no Egipto] é uma libertação, mas ali há uma palavra de Deus, que é a liberdade. Basta pensarmos nos quadros de Chagall em que os anjos entram na chaminé das casas, em que Moisés é encontrado na curva da estrada, em que Cristo é uma parte da paisagem…
O cristianismo diz que Deus, para partilhar plenamente a humanidade, para compreender a sua criatura, que foi feita livre, deve entrar nela e deve, sobretudo, sofrer e morrer. Esta experiência só o homem a faz, não Deus. No cristianismo, o sofrer e o morrer são atravessados pelo próprio Deus…
7M – Através de Jesus Cristo?
G.R. – Através de Jesus Cristo, que é o homem que experimenta todas as dores e sofrimentos, e a paixão que celebramos na Páscoa… Tem medo da morte – “Pai, se é possível afasta de mim este cálice…” –, experimenta a solidão, a traição dos amigos, a tortura… E experimenta ainda, na carne, o facto supremo: o silêncio de Deus – “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” – e o abandono, como cada pessoa que é experimentada e blasfema contra Deus…
7M – Como Job, sobre o qual também escreve?…
G.R. – Como Job, que é o símbolo maior [da blasfémia]… No final, vem a morte. E assim, [Jesus] é reduzido a cadáver e um cadáver manipulável. Mas, na visão cristã, não cessa nunca de ter uma centelha de divino dentro de si. A Páscoa, que é por isso que existe, quer dizer apenas que Deus pode atravessar também a morte e a dor. Não é o Deus de Aristóteles, um motor imóvel, apático. O Deus cristão é um Deus do pathos, patético [que comove].

“A Páscoa, que é por isso que existe, quer dizer apenas que Deus pode atravessar também a morte e a dor. Não é o Deus de Aristóteles, um motor imóvel, apático. O Deus cristão é um Deus do pathos, patético [que comove].”

7M – Referiu o Papa a propósito dos refugiados. Muitas das propostas de Francisco não são aceites por políticos e financeiros. E no tema dos refugiados, a opinião pública aplaude-o mas não o segue… Está seguro do sucesso das propostas do Papa?
G.R. – Tem mais sucesso do que muitos outros pregadores… Não pode imaginar como todos os políticos desejam ter um encontro e a foto com ele. O que quer dizer? Que há sucesso, mesmo quando sabem que ele pensa o contrário… Veja-se a foto com Trump, a foto fala por si. Eles querem a foto.
Na semana [depois da Páscoa fui] a Pequim, por causa da exposição Live green, live better (Viver verde, viver melhor), para a qual o Vaticano foi convidado. Não sabemos bem [as intenções da China], mas desejam fazer chegar ao Papa várias mensagens, sem perder a sua identidade. Mas convidaram, nós não pedimos para ir a esta exposição. E no discurso de Xi Jinping entrevêem-se elementos da [encíclica do Papa sobre a casa comum e a ecologia] Laudato Si’, que se percebe que foi lida. Num país assim poderoso, que se reclama totalmente autossuficiente – e que o é, efectivamente, torna-se cada vez mais imperial…

7M – Mas que continua a ser acusado de perseguir os cristãos e limitar a liberdade religiosa…
G.R. – Sim, mas eles querem estabelecer uma qualquer relação. E isto, do ponto de vista do sucesso, é indubitável. Por isso creio que, mesmo quando não se partilha o ponto de vista, há qualquer coisa de verdadeiro, qualquer coisa que perturba, um espinho na carnePor outro lado, temos a prova com o fundador do cristianismo: se alguém teve sucesso total foi Jesus Cristo e, no final…

7M– Nem São Paulo teve sucesso em Atenas.
G.R. – Sim, e no seu final também… Se considerarmos bem, temos este paradoxo: na vida dos heróis gregos, como género literário, a parte quase exclusiva são todos os seus empreendimentos; para Cristo, a parte fundamental nos evangelhos é a morte. A narrativa da paixão é proporcionalmente muito mais longa, dura apenas dois dias e meio. No resto está sempre em contacto com doentes, prostitutas, más companhias… Mesmo os discípulos… No Evangelho de Marcos, que é o mais antigo, se retirarmos a narrativa da paixão e virmos só o seu ministério público, 46 por cento são curas de doentes, pessoas descartáveis, condenadas ao insucesso…
Temos dois mil anos de uma civilização que dependem de uma derrota, de um insucesso… Dois mil anos em que, ainda por cima, estão aqueles que morrem por esta figura.

7M – Hoje confrontamo-nos com grandes desafios. Por exemplo, com a questão dos refugiados, de que o Papa tanto fala. Em Dezembro, nove países da União Europeia – incluindo a Itália – não assinaram o Pacto das Migrações. Tem medo dos movimentos populistas que estão a crescer e dos resultados das eleições europeias do final de Maio?
G.R. – Temos de ser realistas. O verdadeiro homem de cultura e o verdadeiro homem de religião devem falar à mente e ao coração da pessoa. Esses falam, como se costuma dizer, à barriga. Falar à barriga é mais fácil, falar à razão é mais complicado. Provavelmente a Europa tem ainda anticorpos. Claro que há razões [para isso], não é apenas falar para a barriga, mas é isso que domina: vê-se na forma de criar o medo, mesmo com problemas concretos.
Isto são arcos da história: quando os vândalos chegavam aos muros de Hipona, Santo Agostinho pôs-se a escrever A Cidade de Deus, que é uma tentativa de ver mais longe. Os vândalos fizeram a sua destruição, mas nós herdámos alguma coisa deles…

7M– E dos suevos, dos visigodos… somos herdeiros e descendentes desses povos…
G.R. – Sim, eu sou lombardo: longobardo… Em Monza, que é quase a minha cidade, está a coroa da rainha [longobarda] Teodolinda. Isto faz compreender que, no fim, a história se equilibra e não se pode andar em frente alimentando votos apenas com o medo, com a barriga…

Gianfranco Ravasi: Estamos perante um modo de fazer política ligado à ideia do “sucesso imediato”.

7M – Tem medo que se repita o que vivemos há 70 ou 80 anos atrás? Como o Papa diz, já estamos na terceira guerra mundial aos pedaços?…
G.R. – Veja: quando eu nasci, em 1942, como era a Europa? Havia um banho de sangue com a guerra e o que faziam os nazis aos judeus. E tínhamos dois loucos, politicamente falando: Hitler e Estaline. Hoje, há guerras, situações de insegurança, mas é muito mais positivo em relação ao ano em que nasci. Se pensarmos no Médio Oriente, aquela situação é mesmo um nó inflamável: enquanto não se curar aquela doença, não há nada a fazer por tudo o que diz respeito ao nosso horizonte. Mas não seria tão pessimista…

7M – Mesmo em relação a este discurso do medo do outro, muito semelhante ao de antes da II Guerra…
G.R. – Sim, ele existe. Depois da guerra tivemos a reconstrução, os regimes democráticos e creio que uma das faltas para poder criar uma diferença está ligada à política de hoje, que não tem grandes projectos e vive apenas para as vantagens imediatas, para as eleições, para os lugares… Pense-se no que eram os políticos do pós-guerra: [Robert] Schuman, [Alcide] De Gasperi, [Konrad] Adenauer… E o que era também o projecto da Europa, como foi concebido, a sensibilidade que havia; mesmo os políticos menores tinham qualidade de preparação…

7M – Eram pessoas normais, mas viram mais longe.
G.R. – Sim, tinham um projecto. Isso é o que falta nos nossos dias: não pensar em grande…

7M – Estamos perante um modo de fazer política ligado à lógica televisiva de audiências?
G.R. – Sim, de sucesso imediato. A comunicação de massas mudou. Podemos pensar no que são as fake news ou a pós-verdade, que constrói sobre a areia. Isto é possível através da via informática. A cultura digital mudou o modelo de pessoa: o jovem que, na Europa, passa seis horas por dia ao computador é diferente de mim. Diferente mesmo estruturalmente: ele pensa e tem relações diferentes.
Há tempos recebi um grupo de Silicon Valley e uma das pessoas dizia, tranquilamente, que em alguns períodos, tira o telemóvel aos filhos. “Não quero que estejam todo o tempo com o telefone; eles lamentam, gritam, mas tiro.” E trabalha em Silicon Valley…
O professor francês que tirava os telemóveis aos alunos, teve uma das suas alunas, desesperada, a atirar-se da janela, porque não podia falar… Felizmente era só um primeiro andar. Os políticos, na prática, fazem [como ela]. Trump escreve tweets, os seus discursos são quase reduzidos a um tweet, tem a ver com a linha política…

7M – O incêndio de Notre-Dame simboliza uma parte da alma da Europa que está a desaparecer?
G.R. – A catedral era e é o coração no interior de uma concepção da polis, da planimetria da cidade. Num certo sentido, a vida ramificou-se e convergiu para lá, num movimento centrífugo e centrípeto. O crente encontrava ali não apenas a própria fé, os grandes símbolos do seu credo, mas a grandeza e a beleza. Em todo o mundo, as catedrais exprimem simultaneamente o espírito de fé, mas também o espírito de um povo do ponto de vista histórico-cultural.
O facto de agora Notre-Dame ser propriedade do Estado significa que é considerada por todos como um bem inalienável. Ao mesmo tempo, porém, devemos perguntar-nos: o que mantém vivas as catedrais para que elas não permaneçam como uma espécie de concha vazia, de casca sem conteúdo? A celebração da liturgia. Deste modo, tanto a dimensão religiosa como a cultural e a política estão profundamente unidas.
As catedrais são corpos vivos que sofreram todas as feridas da história e renasceram sempre. O pináculo que se desmoronou neste incêndio remonta ao século XIX e o arquitecto Eugène Viollet-le-Duc, que era o mais importante de Paris, projectou-o com a textura de madeira e chumbo. Isso significa que não devemos desesperar, mas precisamos de começar de novo.

Ravasi: O texto de Bento XVI sobre os abusos sexuais na Igreja, divulgado dias antes da Páscoa, “não é uma grande análise”.

7M – Foi divulgado, dias antes da Páscoa, o texto do Papa Bento XVI sobre os abusos sexuais, que tem um modo de ver o problema diferente do Papa Francisco. Estamos perante duas estratégias e dois papas diferentes, com cada católico a escolher o seu?
G.R. – No magistério, mesmo teologicamente falando, o Papa é sempre um só, ainda que tenha havido períodos em que não se sabia bem qual era o certo…
Li o texto, que era endereçado a uma revista de clero local, não é uma grande análise. Se há um Papa que iniciou com rigor a luta contra a pedofilia, foi Bento XVI. Vim para Roma nomeado por ele [em 2010] e devo dizer que vi a mudança de uma posição em que se preferia resolver as coisas no interior. Ele, sobre isto, foi muito decidido, muito duro, sobretudo na carta à Igreja da Irlanda. Deve reconhecer-se ao Papa Bento o que é do Papa Bento, que faz o que faz em sintonia substancial, na estratégia, com o Papa Francisco.
No fenómeno da pedofilia, ele tem uma interpretação ligada à degeneração de 1968. O problema é que não se pode criticar ou validar uma interpretação, tem a ver com a perspectiva. 1968 teve um papel mas a questão da pedofilia é, de qualquer modo, toda a questão da degeneração – digamos assim porque, em alguns casos, são mudanças estruturais que não queremos julgar –, que veio através de um processo muito amplo e complexo. Nesse ponto, pode assumir-se um elemento mas também discutir a interpretação do fenómeno.
Não sei como foi elaborado o texto. Foi apresentado primeiro ao Papa Francisco e à Secretaria de Estado, isso não há dúvida, o que quer dizer que o Papa Francisco pensava que a multiplicidade de análises seria útil, garantindo a base comum que é a condenação deste fenómeno. Mas o elemento principal foi o facto de ter sido lido e interpretado como um instrumento crítico.

7M – Como instrumento de oposição ao Papa Francisco…
G.R. – Sim, mas isto acontece quando se examinam fenómenos eclesiais com categorias essencialmente políticas. Nós somos mais complicados, mas nunca chegamos a um nível extremo. Se virmos sítios digitais ultraconservadores, que são minoritários, eles são extraordinariamente bem feitos, por pessoas que sabem usar esses materiais. Mas quando se vê os seguidores, é um número mínimo, em relação ao Papa. Mesmo em relação a mim: um dos que vi tinha 1850 seguidores, eu tenho 105 mil e não sou assim tão importante.
Tudo somado, não é relevante. Mas eles tentam representar a cena politicamente, de modo dialéctico, e arriscam-se a ter um sucesso extraordinário: todas as televisões registam…

7M – E porque aproveitam o texto para dizer que o verdadeiro Papa é Bento XVI.
G.R. – Claro, claro. Sabemos que Salvini, em 2016, participou numa iniciativa com uma camisola que dizia “o meu Papa é Bento XVI” e “a mensagem que partilho é a de Bento XVI”. Isto é instrumentalização. Mas não se trata de um grande texto, Ratzinger escreveu coisas muito melhores.

7M – Não é um texto lamentável, como disseram teólogos e bispos?
G.R. – Não, não o considero particularmente significativo. Estou sempre curioso por conhecer as razões de outros, mesmo quando não as partilho. Escutar uma visão diferente da nossa é sempre útil. E o Papa Francisco, que viu o texto antes, também terá concordado que o publicassem… Alguns atacam-no de modo violento, dizendo que não é o Papa, mas ele não perde o sono: sabe que mesmo na Cúria há quem pense diferente, mas considera a diversidade e a escuta…
7M – Criou uma Consulta Feminina no Conselho Pontifício e também o Papa está preocupado em promover o papel das mulheres na Igreja. Há [três] semanas, foi publicado em Portugal o livro Mulheres Diáconos (ed. Paulinas), da professora Phyllis Zagano, que apresenta razões bíblicas e históricas para retomar esse ministério esquecido na Igreja. Esse é um caminho para o reconhecimento das mulheres no catolicismo?
G.R. – Eu criei esta Consulta porque quero que também as mulheres julguem e expressem opiniões, para que não sejam apenas homens…
A questão do diaconato feminino está a ser estudada e merece um aprofundamento, mesmo se eu diga que a tradição histórica é muito possibilista. O problema do diaconato é que progressivamente se tornou apenas uma etapa do sacerdócio. Mas inicialmente não era assim. Hoje temos já diáconos permanentes leigos, que não acedem ao sacerdócio. Estou convencido que se pode encontrar um duplo diaconato: um como etapa para o sacerdócio e outro que não o é, como o dos sete diáconos referidos na Bíblia e que não se tornam apóstolos [padres].

7M – Nesse modelo também podem entrar as mulheres?
G.R. – Sim, há também a referência bíblica à diaconisa Febe, na Carta aos Romanos, falando desta função de mulheres.
De qualquer modo, sobre o problema da valorização das mulheres, vale a pena reter um exemplo do Papa Francisco: “Tomemos um dos momentos fundamentais do cristianismo, no qual temos a representação da Igreja, no cenáculo, no Pentecostes, onde estão Maria e os doze. Os doze [apóstolos] são os bispos. Maria está no centro, mas não é um apóstolo. Mas naquela cena, quem é a figura mais importante? É Maria. E que quer dizer? Que nós centrámos tudo – o poder, a autoridade, o ministério – na função sacerdotal.”
Isto é verdade. Mas, na realidade, a função geral do ministério é muito mais ampla. A Igreja não é absolutamente esta hierarquia sacerdotal, embora isso tenha razões teológicas. Devemos fazer de modo a, lentamente, construir uma Igreja na qual a autoridade, as funções, os ministérios, sejam mais distribuídos, com ministérios diversos, em que pode haver um ministério que não é sacerdotal, mas que é tão importante quanto o sacerdotal.
Trata-se de uma reorganização dos ministérios. Não necessariamente clericalizando as mulheres, ou seja, dizer que o sacerdócio é o único modelo. Esse é um modelo importante, central, porque Cristo escolheu os Doze, mas há uma cena em que uma mulher é a mais importante.

A participação das mulheres na Igreja “é um “problema grave”, mas “o problema mais grave, que ainda não foi bem afrontado, é o dos jovens.”

7M – Mas a participação das mulheres na Igreja é um problema grave?
G.R. – É um problema grave. A verdadeira base eclesial foi sempre prevalentemente feminina. Há uma norma hebraica que estabelece que deve haver dez homens no mínimo como quórum necessário para fazer o rito na sinagoga: se houver nove homens e mil mulheres, o rabi não começa. Se tivéssemos esta regra no catolicismo, nós, os padres, não podíamos nunca rezar missa nos dias de semana, não haveria quórum…
Para mim, no entanto, o problema mais grave, que ainda não foi bem afrontado, é o dos jovens. Houve um sínodo, os documentos, tudo muito interessante, mas basta entrar numa qualquer igreja e vê-se que a presença juvenil é mínima.

7M – Há um problema de transmissão e de distância, como já referiu…
G.R. – É um problema de linguagem. É a questão do médico e do doente, como referia numa das suas perguntas: o médico entra, está presente mesmo fisicamente, não se escandaliza com aqueles gritos, está próximo. Sinceramente: o documento sinodal e mesmo a [exortação do Papa sobre os jovens] Christus vivit os jovens não conseguem lê-los.

7M – Criou aqui, no Conselho Pontifício, também uma Consulta Juvenil. Mas o Papa tão pouco faz muitas sugestões concretas na exortação Christus vivit
G.R. – Por isso a mediação é importante. Devo dizer que o Papa Francisco é capaz de tocar os jovens, porque fala uma linguagem com três características. A primeira é que usa sempre frases breves – os loggia de Jesus, os seus ditos, eram todos assim: “Dai a César o que é de César, dai a Deus o que é Deus.” Uma afirmação sintética: 52 caracteres no máximo, incluindo espaços, sublinho sempre isso. A sua primeira pregação é: “O reino de Deus está próximo, convertei-vos.” Tem tudo: o aspecto teológico, o aspecto ético. Depois, ele explicará o que quer dizer, mas está ali tudo.
Segundo: as imagens. Agora todos sabem o que são as periferias existenciais. De tal modo é verdade que também um não-crente como o arquitecto Renzo Piano está a tentar, como ele diz, remendar as periferias da cidade, aqui em Roma. Mas há também o cheiro das ovelhas, o hospital de campanha… são como as parábolas de Jesus.
Terceiro, e este é um elemento provocador: os jovens vivem na virtualidade, o Papa usa muito a corporeidade. Dou sempre um exemplo: as audiências papais com Bento XVI tinham três quartos de hora ou uma hora de discurso e saudações, depois o Papa circulava durante vinte minutos; agora, com Francisco, são vinte ou trinta minutos de discurso e saudações, já com a tradução, e depois uma hora a circular…
7M – Ou duas, como já vi…
G.R. – Sim, é a corporeidade a funcionar e os jovens compreendem. O discurso que fez sábado [13 de Abril], contra o telemóvel, é um exemplo. Ele faz isso, fisicamente, e esse era o modo de Cristo. O corpo é importante.
(Esta entrevista foi inicialmente publicada na revista E/Expresso, dia 4 de Maio de 2019)


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