«Está na altura de incluir na
agenda política o combate à pornografia» - não, esta frase não é de algum
político moralista e ultraconservador. É de um embaixador especial do governo
sueco para o combate ao tráfico de pessoas.
Ouvi-o num congresso internacional (onde estive presente em representação
da associação “O Ninho”) que decorreu em Mainz, na Alemanha, de movimentos que
lutam pela abolição da prostituição, como violação dos direitos humanos, e pela
implementação legislativa do chamado “modelo nórdico” (ou “modelo sueco”), o
qual pune o proxenetismo e o cliente de prostituição e apoia a reinserção
social das pessoas prostituídas encaradas como vítimas. Esse embaixador do
governo sueco apresentou os sucessos desse modelo (já com vinte anos), que
reduziu significativamente a prostituição, o tráfico de pessoas e, sobretudo,
contribuiu para desfazer o mito de que esse fenómeno é inevitável (“a mais velha profissão do mundo”), como
se algumas mulheres tivessem de resignar-se à condição de mercadoria. Definiu o
seu governo como um governo fortemente empenhado na causa feminista. Essa mesmo
causa levava-o a equiparar a prostituição à pornografia: num e noutro caso, as
mulheres são vítima de exploração, através destes dois fenómenos difunde-se uma
ideia destorcida das relações sexuais, com a coisificação da pessoa.
Recordei-me de imediato de que foi precisamente na Suécia, e noutros
países nórdicos, que se iniciou, a partir dos anos setenta do século passado, o
movimento universal de liberalização da pornografia, com a invocação da
ausência da sua danosidade social e da ausência de correlação entre o seu
consumo e a criminalidade sexual. Recordei-me também da exposição de motivos do
diploma que em Portugal pela primeira vez legalizou a venda de material
pornográfico (com limitações que nunca chegaram a ser observadas), o Decreto-Lei
n,º 254/76, onde se afirma que o consumo de pornografia é defendido por «psicólogos, sociólogos e pedagogos» e
desempenha «uma função desmistificadora e
desintoxicante».
Nesse congresso fez-se representar uma organização feminista sueca, Talita (www.talita.org), que apoia mulheres vítimas da prostituição e também
da pornografia. Uma sua publicação, 10
Myths About Porn desfaz, com base em sólida investigação empírica, essas
ideias que serviram de base à liberalização da pornografia.
Nessa publicação afirma-se que centenas de estudos internacionais, ao
longo de cinquenta anos, revelam uma ligação entre o consumo de pornografia por
homens e rapazes e uma maior agressividade sexual contra mulheres e raparigas.
Uma meta-análise de 2016, baseada em 22 estudos de sete diferentes países,
revela uma relação significativa entre um maior consumo de pornografia e uma maior
agressividade sexual, independentemente da violência física explícita que ela possa
conter. É assim porque na pornografia se verifica sempre uma degradação e
coisificação da mulher. A pornografia serve, de acordo com as conclusões desse
estudo, de catalisador e inspiração para a agressão sexual.
Outros mitos que essa publicação pretende desfazer são os de que o
consumo de pornografia não afeta a qualidade do relacionamento sexual pessoal,
de que a pornografia é pura fantasia ou de que ela pode ser um instrumento de
educação sexual. A pornografia veicula uma imagem de relacionamento entre
homens e mulheres que é exatamente o oposto de um relacionamento baseado no
consentimento, no respeito e na igualdade. Trivializa a violência e a
humilhação.
A investigação invocada nessa publicação revela também a similitude entre
os fenómenos da pornografia e da prostituição. Num e noutro caso, as mulheres
usadas provêm de contextos sociais muito desfavorecidos, com experiências de
pobreza extrema, abandono familiar ou abusos sexuais na infância; num e noutro
caso, essas mulheres sofrem de stress
pós-traumático num escala equiparável à das vítimas de guerra, tortura ou
violação. Os consumidores de pornografia também se assemelham, na postura que
têm para com a mulher, aos clientes da prostituição.
Surpreendeu-me este tipo de discurso, que noutro contexto poderia parecer
conservador, vindo de representantes da sociedade civil e do governo de um
país, a Suécia, muitas vezes apresentado como arauto da mentalidade dita
progressista (com as suas melhores e piores facetas: no que ao aborto diz
respeito, por exemplo, é dos poucos países que nem sequer reconhece a
possibilidade de objeção de consciência). Uma mentalidade que o fez ser
pioneiro na liberalização da pornografia e na promoção da igualdade entre homem
e mulher. E que verifica hoje a radical incompatibilidade entre essas dois
objetivos.
Isso fez-me refletir no erro que é querer seguir acriticamente os “ares do tempo”, em muitas questões e
também nesta da ética sexual; no erro que foi seguir alguns dos que eram os “ares do tempo” no final da década de
sessenta do século passado. E no que significa, na verdade, ser “progressista”,
o que representa um verdadeiro progresso e o que representa uma regressão.
Pedro Vaz Patto
Presidente da
Comissão Nacional
Justiça e Paz
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