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domingo, 30 de junho de 2019

Progresso e regressão

«Está na altura de incluir na agenda política o combate à pornografia» - não, esta frase não é de algum político moralista e ultraconservador. É de um embaixador especial do governo sueco para o combate ao tráfico de pessoas.

Ouvi-o num congresso internacional (onde estive presente em representação da associação “O Ninho”) que decorreu em Mainz, na Alemanha, de movimentos que lutam pela abolição da prostituição, como violação dos direitos humanos, e pela implementação legislativa do chamado “modelo nórdico” (ou “modelo sueco”), o qual pune o proxenetismo e o cliente de prostituição e apoia a reinserção social das pessoas prostituídas encaradas como vítimas. Esse embaixador do governo sueco apresentou os sucessos desse modelo (já com vinte anos), que reduziu significativamente a prostituição, o tráfico de pessoas e, sobretudo, contribuiu para desfazer o mito de que esse fenómeno é inevitável (“a mais velha profissão do mundo”), como se algumas mulheres tivessem de resignar-se à condição de mercadoria. Definiu o seu governo como um governo fortemente empenhado na causa feminista. Essa mesmo causa levava-o a equiparar a prostituição à pornografia: num e noutro caso, as mulheres são vítima de exploração, através destes dois fenómenos difunde-se uma ideia destorcida das relações sexuais, com a coisificação da pessoa.

Recordei-me de imediato de que foi precisamente na Suécia, e noutros países nórdicos, que se iniciou, a partir dos anos setenta do século passado, o movimento universal de liberalização da pornografia, com a invocação da ausência da sua danosidade social e da ausência de correlação entre o seu consumo e a criminalidade sexual. Recordei-me também da exposição de motivos do diploma que em Portugal pela primeira vez legalizou a venda de material pornográfico (com limitações que nunca chegaram a ser observadas), o Decreto-Lei n,º 254/76, onde se afirma que o consumo de pornografia é defendido por «psicólogos, sociólogos e pedagogos» e desempenha «uma função desmistificadora e desintoxicante».

Nesse congresso fez-se representar uma organização feminista sueca, Talita (www.talita.org), que apoia mulheres vítimas da prostituição e também da pornografia. Uma sua publicação, 10 Myths About Porn desfaz, com base em sólida investigação empírica, essas ideias que serviram de base à liberalização da pornografia.

Nessa publicação afirma-se que centenas de estudos internacionais, ao longo de cinquenta anos, revelam uma ligação entre o consumo de pornografia por homens e rapazes e uma maior agressividade sexual contra mulheres e raparigas. Uma meta-análise de 2016, baseada em 22 estudos de sete diferentes países, revela uma relação significativa entre um maior consumo de pornografia e uma maior agressividade sexual, independentemente da violência física explícita que ela possa conter. É assim porque na pornografia se verifica sempre uma degradação e coisificação da mulher. A pornografia serve, de acordo com as conclusões desse estudo, de catalisador e inspiração para a agressão sexual.

Outros mitos que essa publicação pretende desfazer são os de que o consumo de pornografia não afeta a qualidade do relacionamento sexual pessoal, de que a pornografia é pura fantasia ou de que ela pode ser um instrumento de educação sexual. A pornografia veicula uma imagem de relacionamento entre homens e mulheres que é exatamente o oposto de um relacionamento baseado no consentimento, no respeito e na igualdade. Trivializa a violência e a humilhação.

A investigação invocada nessa publicação revela também a similitude entre os fenómenos da pornografia e da prostituição. Num e noutro caso, as mulheres usadas provêm de contextos sociais muito desfavorecidos, com experiências de pobreza extrema, abandono familiar ou abusos sexuais na infância; num e noutro caso, essas mulheres sofrem de stress pós-traumático num escala equiparável à das vítimas de guerra, tortura ou violação. Os consumidores de pornografia também se assemelham, na postura que têm para com a mulher, aos clientes da prostituição.

Surpreendeu-me este tipo de discurso, que noutro contexto poderia parecer conservador, vindo de representantes da sociedade civil e do governo de um país, a Suécia, muitas vezes apresentado como arauto da mentalidade dita progressista (com as suas melhores e piores facetas: no que ao aborto diz respeito, por exemplo, é dos poucos países que nem sequer reconhece a possibilidade de objeção de consciência). Uma mentalidade que o fez ser pioneiro na liberalização da pornografia e na promoção da igualdade entre homem e mulher. E que verifica hoje a radical incompatibilidade entre essas dois objetivos.

Isso fez-me refletir no erro que é querer seguir acriticamente os “ares do tempo”, em muitas questões e também nesta da ética sexual; no erro que foi seguir alguns dos que eram os “ares do tempo” no final da década de sessenta do século passado. E no que significa, na verdade, ser “progressista”, o que representa um verdadeiro progresso e o que representa uma regressão.

Pedro Vaz Patto
Presidente da
Comissão Nacional
Justiça e Paz



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