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domingo, 23 de junho de 2019

Abolicionismo

Abolir a prostituição pode ser visto como uma utopia, pois «sempre existiu e sempre existirá». O mesmo se disse da escravatura, mas num e noutro caso estamos perante a redução da pessoa a mercadoria.

Decorreu de 2 a 4 de abril, em Mainz (Alemanha), o terceiro congresso mundial «contra a exploração sexual de mulheres e meninas», organizado pela CAP (Coalition for the abolition of prostitution) International. Esta plataforma reúne trinta organizações de vinte e quatro países (dela faz parte a associação portuguesa “o Ninho”) que pugnam pela abolição da prostituição enquanto violação da dignidade da pessoa e da igualdade entre homem e mulher, recusando a sua qualificação como “trabalho sexual”. Nessa linha, pugnam pela implementação do regime legal inicialmente implantado na Suécia (por isso, habitualmente designado por “modelo nórdico”) e sucessivamente adotado por outros países (a Noruega, a Islândia, o Canadá, a Irlanda do Norte, a República da Irlanda e a França), regime que pune o proxenetismo e também o cliente da prostituição e encara a pessoa prostituída como vítima a quem é devido apoio psicológico e social.

Não foi escolhida por acaso a Alemanha como anfitriã do congresso. O regime legal aí adotado situa-se no polo oposto: a prostituição é aí encarada como um trabalho como qualquer outro, com cobertura legal. Os malefícios deste sistema (uma experiência de mais de dezasseis anos que faz com que a Alemanha seja por vezes descrita como “o bordel da Europa”, com cerca de quatrocentas mil pessoas prostituídas) foram vigorosamente denunciados no congresso, de onde surgiu uma declaração dirigida ao governo federal alemão (a “declaração de Mainz”), reclamando a sua alteração e a adoção do “modelo nórdico” (ou “abolicionista”).

Um assinável protagonismo foi dado nesse congresso às chamadas “sobreviventes” da prostituição, mulheres firmemente empenhadas na causa da sua abolição e que falam com a autoridade de quem sentiu na pele os seus malefícios. As “sobreviventes” presentes no congresso provinham da Alemanha, da Irlanda, da Roménia, da França, dos Estados Unidos, do Canadá, da África do Sul e da Austrália. Umas de idade mais avançada, outras muito jovens. Uma destas, desde muito jovem vítima de uma rede de tráfico, salientou como a circunstância de a prostituição ser (na Alemanha) legalizada, reconhecida e apoiada pelo Estado como um qualquer trabalho, a levou a não reconhecer de imediato os riscos que corria quando foi capturada por essa rede. Todas elas afirmaram que nunca conheceram no meio alguma mulher que encarasse essa atividade como uma escolha que respondesse a alguma forma de realização pessoal. Uma outra afirmou em termos categóricos: «esta é uma forma de escravatura que existe desde há séculos, mas que nunca foi tão normalizada (porque apoiada pelo Estado e organizações filantrópicas) como hoje». E essa normalização reduz o impacto do grito sofrido dessas “sobreviventes”.

Dos danos inerentes a qualquer forma de prostituição no plano da saúde psíquica, falaram as especialistas Michaela Huber e Ingeborg Kraus (cujos estudos são divulgados em www.trauma-and-prostitution.eu). Realçaram como o exercício da prostituição conduz à dissociação entre “corpo e alma”, à tentativa de alheamento em relação a uma prática corporal que se considera não desejada e repugnante, com graves consequência no plano da estruturação da identidade pessoal. A ocorrência de stress pós-traumático é, nas vítimas de prostituição, mais frequente do que em militares que experimentaram cenários de guerra. Nelas é frequente a extrema dificuldade em vivenciar a sexualidade associada ao afeto e à comunhão pessoal. A autoestima é gravemente afetada. Estes danos têm sido incrementados na Alemanha desde a legalização da prostituição e a sua consequente expansão.

Da ligação entre a legalização da prostituição na Alemanha e a criminalidade organizada, falou o comissário de polícia reformado Manfred Paulus. Nas redes de prostituição alemãs estão hoje infiltradas mafias de países da Europa de Leste, países de onde provém a esmagadora maioria das mulheres prostituídas. Para essas mafias, este é um negócio altamente lucrativo, que exige pouco investimento (é barato recrutar mulheres pobres iludidas com a possibilidade de um trabalho na Alemanha) e não envolve grandes riscos, pois pode ser exercido a coberto da legalidade (as sua facetas criminalmente mais graves escondem-se por detrás de uma fachada legal).

Melissa Farley salientou as características típicas do cliente da prostituição, que vem estudando desde há vários anos (veja-se www,prostitutionreserch.com). Este, por ter pago, sente-se com o direito de reduzir a mulher prostituída a objeto (uma sex machine), a exigir dela o que outra mulher nunca consentiria (paga para ter um “sim” quando sem pagar teria um “não”). Por isso, a violência é inerente à prostituição. Normalizá-la é aceitar que todos os impulsos sexuais dos homens não podem deixar de ser satisfeitos (o que também poderia justificar a violação).

Sobre o balanço da implementação do modelo abolicionista na Suécia (desde há vinte anos, um tempo suficiente para se fazer um balanço), falou Per-Anders Sunesson, embaixador do governo sueco para a luta contra o tráfico de pessoas. A prostituição de rua foi aí reduzida para menos de metade. Segundo dados da Interpol, as redes de tráfico praticamente deixaram de ter como destino a Suécia (o que revela como a redução da procura á a melhor forma de reduzir a oferta). Os números globais de pessoas prostituídas são cerca de dez vezes inferiores, proporcionalmente, aos da Holanda e da Alemanha. Um notável esforço financeiro sustem projectos de reinserção social de pessoas prostituídas (tidos como uma prioridade). E o efeito mais significativo será o da transformação da mentalidade comum a respeito da prostituição, que deixou de ser encarada como uma inevitabilidade, O apoio à lei é transversal entre os partidos políticos e na população em geral passou de 30% na altura da sua aprovação para 70% atualmente.

O modelo sueco serviu de inspiração à lei vigente em França desde 2016. Os deputados franceses que a aprovaram, com uma maioria transversal, basearam-se em estudos aprofundados sobre os efeitos dos sistemas legais de vários países. Para a aprovação da lei, contribuíram em grande medida as organizações presentes no congresso. Foi rejeitada pelo Conseil Constitutionnel um recurso que invocava a inconstitucionalidade da lei por ofensa ao direito à privacidade e à liberdade de empresa.

Abolir a prostituição pode ser encarado como uma utopia, porque ela «sempre existiu e sempre existirá». Foi isso mesmo que se disse da escravatura durante séculos. Num e noutro caso estamos perante a redução da pessoa a objeto e a mercadoria. Talvez um dia possamos encarar a prostituição como olhamos hoje para a escravatura. Esta também não desapareceu da face da Terra, mas já deixou de ser tolerada pela consciência moral e jurídica da humanidade. Assim poderá suceder um dia com a prostituição. Foi esta a ideia que este congresso pretendeu transmitir.

Presidente da mesa da assembleia geral de “O Ninho”.

PVPatto, 08.04.2019, publicado no Jornal: O Observador: https://observador.pt/opiniao/abolicionismo/



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