Abolir a prostituição pode ser visto como uma utopia, pois
«sempre existiu e sempre existirá». O mesmo se disse da escravatura, mas num e
noutro caso estamos perante a redução da pessoa a mercadoria.
Decorreu de 2 a 4 de abril, em Mainz (Alemanha), o terceiro
congresso mundial «contra a exploração sexual de mulheres e meninas»,
organizado pela CAP
(Coalition for the abolition of prostitution) International. Esta
plataforma reúne trinta organizações de vinte e quatro países (dela faz parte a
associação portuguesa “o Ninho”) que pugnam pela abolição da prostituição
enquanto violação da dignidade da pessoa e da igualdade entre homem e mulher,
recusando a sua qualificação como “trabalho sexual”. Nessa linha, pugnam pela
implementação do regime legal inicialmente implantado na Suécia (por isso,
habitualmente designado por “modelo nórdico”) e sucessivamente adotado por
outros países (a Noruega, a Islândia, o Canadá, a Irlanda do Norte, a República
da Irlanda e a França), regime que pune o proxenetismo e também o cliente da
prostituição e encara a pessoa prostituída como vítima a quem é devido apoio
psicológico e social.
Não foi escolhida por acaso a Alemanha como anfitriã do
congresso. O regime legal aí adotado situa-se no polo oposto: a prostituição é
aí encarada como um trabalho como qualquer outro, com cobertura legal. Os
malefícios deste sistema (uma experiência de mais de dezasseis anos que faz com
que a Alemanha seja por vezes descrita como “o bordel da Europa”, com cerca de
quatrocentas mil pessoas prostituídas) foram vigorosamente denunciados no
congresso, de onde surgiu uma declaração dirigida ao governo federal alemão (a
“declaração de Mainz”), reclamando a sua alteração e a adoção do “modelo
nórdico” (ou “abolicionista”).
Um assinável protagonismo foi dado nesse congresso às chamadas
“sobreviventes” da prostituição, mulheres firmemente empenhadas na causa da sua
abolição e que falam com a autoridade de quem sentiu na pele os seus
malefícios. As “sobreviventes” presentes no congresso provinham da Alemanha, da
Irlanda, da Roménia, da França, dos Estados Unidos, do Canadá, da África do Sul
e da Austrália. Umas de idade mais avançada, outras muito jovens. Uma destas,
desde muito jovem vítima de uma rede de tráfico, salientou como a circunstância
de a prostituição ser (na Alemanha) legalizada, reconhecida e apoiada pelo
Estado como um qualquer trabalho, a levou a não reconhecer de imediato os
riscos que corria quando foi capturada por essa rede. Todas elas afirmaram que
nunca conheceram no meio alguma mulher que encarasse essa atividade como uma
escolha que respondesse a alguma forma de realização pessoal. Uma outra afirmou
em termos categóricos: «esta é uma forma de escravatura que existe desde há séculos,
mas que nunca foi tão normalizada (porque apoiada pelo Estado e organizações
filantrópicas) como hoje». E essa normalização reduz o impacto do
grito sofrido dessas “sobreviventes”.
Dos danos inerentes a qualquer forma de prostituição no plano da
saúde psíquica, falaram as especialistas Michaela Huber e Ingeborg Kraus (cujos
estudos são divulgados em www.trauma-and-prostitution.eu). Realçaram como o exercício da prostituição
conduz à dissociação entre “corpo e alma”, à tentativa de alheamento em relação
a uma prática corporal que se considera não desejada e repugnante, com graves
consequência no plano da estruturação da identidade pessoal. A ocorrência de stress
pós-traumático é, nas vítimas de prostituição, mais frequente do que em militares
que experimentaram cenários de guerra. Nelas é frequente a extrema dificuldade
em vivenciar a sexualidade associada ao afeto e à comunhão pessoal. A
autoestima é gravemente afetada. Estes danos têm sido incrementados na Alemanha
desde a legalização da prostituição e a sua consequente expansão.
Da ligação entre a legalização da prostituição na Alemanha e a
criminalidade organizada, falou o comissário de polícia reformado Manfred
Paulus. Nas redes de prostituição alemãs estão hoje infiltradas mafias
de países da Europa de Leste, países de onde provém a esmagadora
maioria das mulheres prostituídas. Para essas mafias, este é
um negócio altamente lucrativo, que exige pouco investimento (é barato recrutar
mulheres pobres iludidas com a possibilidade de um trabalho na Alemanha) e não
envolve grandes riscos, pois pode ser exercido a coberto da legalidade (as sua
facetas criminalmente mais graves escondem-se por detrás de uma fachada legal).
Melissa Farley salientou as características típicas do cliente
da prostituição, que vem estudando desde há vários anos (veja-se www,prostitutionreserch.com).
Este, por ter pago, sente-se com o direito de reduzir a mulher prostituída a
objeto (uma sex
machine), a exigir dela o que outra mulher nunca consentiria (paga
para ter um “sim” quando sem pagar teria um “não”). Por isso, a violência é
inerente à prostituição. Normalizá-la é aceitar que todos os impulsos sexuais
dos homens não podem deixar de ser satisfeitos (o que também poderia justificar
a violação).
Sobre o balanço da implementação do modelo abolicionista na
Suécia (desde há vinte anos, um tempo suficiente para se fazer um balanço),
falou Per-Anders Sunesson, embaixador do governo sueco para a luta contra o
tráfico de pessoas. A prostituição de rua foi aí reduzida para menos de metade.
Segundo dados da Interpol, as redes de tráfico praticamente deixaram de ter
como destino a Suécia (o que revela como a redução da procura á a melhor forma
de reduzir a oferta). Os números globais de pessoas prostituídas são cerca de dez
vezes inferiores, proporcionalmente, aos da Holanda e da Alemanha. Um notável
esforço financeiro sustem projectos de reinserção social de pessoas
prostituídas (tidos como uma prioridade). E o efeito mais significativo será o
da transformação da mentalidade comum a respeito da prostituição, que deixou de
ser encarada como uma inevitabilidade, O apoio à lei é transversal entre os
partidos políticos e na população em geral passou de 30% na altura da sua
aprovação para 70% atualmente.
O modelo sueco serviu de inspiração à lei vigente em França
desde 2016. Os deputados franceses que a aprovaram, com uma maioria
transversal, basearam-se em estudos aprofundados sobre os efeitos dos sistemas
legais de vários países. Para a aprovação da lei, contribuíram em grande medida
as organizações presentes no congresso. Foi rejeitada pelo Conseil
Constitutionnel um recurso que invocava a inconstitucionalidade da
lei por ofensa ao direito à privacidade e à liberdade de empresa.
Abolir a prostituição pode ser encarado como uma utopia, porque
ela «sempre
existiu e sempre existirá». Foi isso mesmo que se disse da
escravatura durante séculos. Num e noutro caso estamos perante a redução da
pessoa a objeto e a mercadoria. Talvez um dia possamos encarar a prostituição
como olhamos hoje para a escravatura. Esta também não desapareceu da face da
Terra, mas já deixou de ser tolerada pela consciência moral e jurídica da
humanidade. Assim poderá suceder um dia com a prostituição. Foi esta a ideia
que este congresso pretendeu transmitir.
Presidente da mesa da assembleia geral de “O Ninho”.
PVPatto, 08.04.2019, publicado no Jornal: O
Observador: https://observador.pt/opiniao/abolicionismo/
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