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que me afastei do Partido Comunista, aos 22 anos, conservei uma visão do
marxismo como teoria errada, mas valiosa. Três décadas de estudos
persuadiram-me de que ele é uma doutrina não apenas falsa, mas mentirosa até à
medula.
Marx
mente nos seus pressupostos filosóficos, mente na sua apresentação da História,
mente nas suas teorias económicas e mente nos dados estatísticos com que finge
comprová-las. De sua obra nada se aproveita, exceto o treino dialético que se
ganha em duelar com um mentiroso astuto.
Perguntar
se suas mentiras são propositais ou inconscientes - e nesta última hipótese
tentar salvar uma suposta "boa intenção" por trás da falsidade - é
ignorar por completo as diferenças entre consciência normal e sociopática.
Karl
Marx foi com toda a evidência um sociopata, uma alma na qual a nebulosa mistura
de verdade e falsidade era um traço permanente, uma compulsão irresistível, não
se aplicando a esse caso a distinção entre a reta intenção da vontade e as
falhas involuntárias da inteligência, com que explicamos os erros dos homens
normais.
É
impossível não perceber algo dessa mistura já em Hegel, seu antecessor e, de
certo modo, mestre. Toda a filosofia de Hegel funda-se na premissa de que
"o Ser, sem suas determinações, é idêntico ao Nada", uma afirmação à
qual ele confere validade objetiva absoluta embora sabendo que ela só tem
significado quando referida não ao Ser e sim apenas ao conhecimento que temos
dele, e que ampliada para fora desse domínio é uma sentença totalmente
desprovida de significado. Digo "embora sabendo" porque é impossível
que um homem dotado da destreza lógica de Hegel não percebesse, nessa pedra
fundamental da sua doutrina, a rachadura lógica entre uma meia-verdade e um
"flatus vocis". Mas Hegel, firmemente decidido a construir um sistema
universal, não se deteve ante o que, aos olhos de sua ambição, pareceu um
detalhe desprezível. Seguiu em frente, misturando em doses cada vez mais
complexas as meias-verdades às meias mentiras à medida que a construção se
avolumava.
Marx
partiu dessa monstruosa falsificação teorética para erigir, em cima dela, a
falsificação da existência real, a ação historicamente falseada de milhões de
seres humanos que consagraram suas próprias vidas e sacrificaram milhões de
vidas alheias no altar da mentira sistematizada.
Como
foi possível que chegasse a recrutar tantos discípulos, a agitar tão vastas
forças sociais e políticas, a desfigurar a face do mundo a ponto de torná-lo indistinguível do inferno?
O
sociopata, como o esquizofrénico, é uma alma dividida, mas dividida de tal modo
que as partes separadas, sem jamais juntar-se num confronto consciente,
concorrem para uma meta comum determinada pela vontade, o que o torna
notavelmente capacitado para a ação - ao contrário do esquizofrénico - na mesma
medida em que incapacitado para o julgamento moral de si próprio.
Enquanto
na psique normal a base da ação eficaz é a coerência entre consciência
cognitiva e vontade, no sociopata é a separação delas que produz aquela
desenvoltura, aquela liberdade, que lhe permite agir eficazmente onde o homem
são seria detido por escrúpulos de consciência. A força de vontade, no
sociopata, não reflete a firmeza de uma convicção madura e consciente, mas a
inescrupulosidade de um desejo avassalador que vence todas as hesitações
sufocando a voz da consciência quando esta lhe cobra os direitos da verdade ou
simplesmente lhe relembra a fragilidade da condição humana.
A
força do homem são está na unidade da sua alma; a do sociopata, na
impossibilidade de unificar-se, que o leva a espalhar a dubiedade e a confusão
por onde passe. A primeira é idêntica à "simplicidade" bíblica; a
segunda, à complexidade irremediável de uma ruptura interna que se
automultiplica indefinidamente. A primeira reflete o "sim, sim - não,
não" do mandamento de Jesus; a segunda é a voz do "bilingüis
maledictus", o homem de língua bífida incapaz de dizer sem desdizer.
Daí a
diferença entre a dialética clássica, de Sócrates e Aristóteles, e a dialética
moderna de Hegel e Marx. A primeira era a arte de reduzir as contradições à
unidade; a segunda, a técnica de fazê-las proliferar até que não possam mais
ser abrangidas na unidade de uma visão intelectual e extravasem para a vida
ativa, semeando o ódio e a guerra sem fim. A primeira supera as contradições da
"práxis" na unidade superior da consciência contemplativa; a segunda
alastra para o reino da "práxis" o ódio a si mesmo que atormenta o
intelecto incapaz de repouso contemplativo.
Olavo de Carvalho
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