Editorial publicado no jornal italiano "Il Sole 24 Ore" neste domingo, 31 de Agosto, escrito por dom Bruno Forte, arcebispo de Chieti-Vasto
Roma, 02 de Setembro de 2014 (Zenit.org)
Na conversa com os jornalistas durante o voo de volta de
Seul para Roma, após a terceira viagem internacional do seu pontificado,
Francisco falou da situação no Iraque e da necessidade de parar o
injusto agressor mediante um esforço multilateral, promovido e garantido
pela ONU. Neste contexto, o papa denunciou a "crueldade selvagem" do
armamento de guerra não convencional e da tortura, empregados pelos
jihadistas, e observou dolorosamente: "Estamos na Terceira Guerra
Mundial, realizada por partes".
A afirmação é tão grave quanto certa e ressalta o peso que as
forças fundamentalistas islâmicas estão exercendo na desestabilização da
ordem internacional, ao promoverem um extenso plano de acção para
combater os seus próprios irmãos muçulmanos, o cristianismo e as outras
religiões e visões de mundo a que se contrapõem. No entanto, é o
Ocidente que esses novos bárbaros identificam como o principal inimigo a
ser abatido. Do Iraque à Síria, da Líbia à Somália, a "guerra santa"
parece lançar a sua ofensiva de modo amplo e sincronizado, com miras
expansionistas escancaradas. Minimizar a gravidade desta situação seria
próprio de irresponsáveis. Reduzir os problemas a simples conflitos
locais é tentar negar a realidade.
A verdade é que o novo inimigo da humanidade é mais do que nunca o
fundamentalismo, que não deve ser confundido de maneira nenhuma com as
formas do Islão autêntico e com as aspirações de paz e justiça que
permeiam o coração e o comprometimento de muitos muçulmanos. Uma posição
inter-religiosa de denúncia firme e sem resquícios de fundamentalismo é
mais necessária do que nunca. Para promovê-la e instá-la, é oportuno
reflectir sobre os caracteres absolutamente desumanos e perversos das
ideologias fundamentalistas.
Tento fazê-lo a partir de uma declaração do Evangelho em que Jesus
reprova a hipocrisia dos escribas e dos fariseus, baseada em
externalidades e transgressora das "prescrições mais importantes da lei:
a justiça, a misericórdia e a fidelidade" (Mt 23 , 23). Estas são as
três ideias-chave que o fundamentalismo distorce até transformar no seu
oposto; ideias em torno às quais devemos convergir a fim de nos opormos à
barbárie e à violência cega mediante um verdadeiro compromisso no
serviço da paz para todos.
Em primeiro lugar, a justiça: na acepção positiva, ela consiste no
respeito e na promoção dos direitos de cada um, ou seja, no
reconhecimento da máxima "a cada um o que é seu" ("unicuique suum", em
latim). Já na deformação ideológica, a justiça é transformada na
imposição da lei do mais forte, identificada como a única norma e medida
do bem e do mal, em nome de um fim que pode justificar quaisquer meios.
Esse fim seria a destruição do que é diferente, com a imposição de uma
única visão de mundo tida por verdadeira e cuja consecução é confiada à
força das armas. A "jihad", que, no sentido original, é o compromisso
com o bem e a luta contra o mal em si mesmos e na história, se
transforma na guerra contra o outro, que deve ser destruído a todo
custo.
A identificação entre justiça e violência em nome da verdade e da
soberania divinas serve como a terrível motivação de todo tipo de abuso e
de insulto à dignidade da pessoa humana, imagem de Deus. Assim, esta
lógica se revela perversa, ofendendo exactamente Aquele a quem
pretenderia dar glória: o Deus Senhor e Pai de todos, o Criador do
homem, que certamente não pode se alegrar com a ofensa infligida à Sua
criatura; Ele próprio vem a ser vilipendiado por aqueles que ferem de
qualquer forma o ser humano criado à Sua imagem e semelhança. Toda
violência em nome de Deus é blasfémia e incredulidade! Nenhuma fé
religiosa autêntica pode motivar a violação dos direitos inalienáveis
da pessoa humana, a começar pelo direito à vida e à protecção da sua
liberdade de expressão e de realização.
Entende-se com isto o quanto a ideia de misericórdia é fundamental
para complementar a de justiça: na acepção bíblica, a palavra "rahamim",
que transmite a ideia de misericórdia, evoca o ventre materno, o útero
da vida, de onde todos nascemos. Ser misericordioso significa reconhecer
essa comum e original pertença a uma mesma origem e um mesmo destino. A
misericórdia remete à mesma fonte materna e paterna da qual viemos
todos. O Deus misericordioso da Bíblia, o Pai de Jesus, e também o Deus
misericordioso e compassivo mencionado no Alcorão são o mesmo Deus de
traços paternos e maternos.
O fundamentalista, sentindo-se dono da imagem da divindade, aplica a
misericórdia só a si mesmo e aos seus companheiros, ou no máximo àqueles
que lhe são afins por interesse: de categoria universal, fundamento da
paz entre todos, a misericórdia é transformada em ciosa apropriação, em
autojustificativa e em tolerância do mal provocado em prol da própria
causa, tornando-se ofensa ao amor universal do Deus único. O acesso à
misericórdia passa pela decidida rejeição de toda falsificação da
misericórdia. Experimenta-se a misericórdia quando se sabe acolher e
perdoar o outro, mesmo o inimigo, em nome de um amor maior: "Sede
misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso" (Lc 27,36).
Finalmente, a fidelidade é o valor que humaniza e que salva quando se
concretiza no compromisso de manter a justa aliança de amor e de vida
estabelecida com Deus e com os outros, na experiência da misericórdia
recebida e dada. Quando o fundamentalismo reduz a fidelidade ao
princípio de uma coerência infame com a justificativa da violência em
nome do fim, ou seja, quando a fidelidade se torna integrismo ou
imposição cega da própria verdade, não resta mais nada do original
sentido da palavra, que, na Bíblia, é sinónimo de verdade ('emet), de
estabilidade no bem e de adesão obediente à lei moral inscrita nas
tábuas dos Dez Mandamentos e no coração de toda pessoa. Fiel ao Deus
vivo é aquele que pratica a Sua misericórdia e se deixa moldar pelo Seu
amor.
Ofende o nome do Altíssimo quem faz da alegada fidelidade ao divino a
justificativa da violência e do abuso de poder sobre os outros.
Justiça, misericórdia e fidelidade são as três ideias-chave sobre as
quais se constrói a honesta convivência humana de acordo com o plano do
Criador: qualquer abuso dessas ideias para servir aos interesses da
própria causa, tornando-a falsificação ideológica, é ofensiva à
soberania de Deus e à dignidade da criatura feita à imagem dele.
Esclarecer estes pontos é dever de todos os professores e testemunhas
das crenças religiosas autênticas: a sua mobilização conjunta, portanto,
é premente para isolar e secar na raiz toda a barbárie fundamentalista,
que tenta se justificar em nome de um Deus reduzido a ídolo e utilizado
para servir às próprias ilusões aberrantes de omnipotência.
(02 de Setembro de 2014) © Innovative Media Inc.
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