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terça-feira, 23 de setembro de 2014

Quando um agente estatal exige que uma freira não reze, ainda há liberdade religiosa?

Quando um agente estatal faz uma exigência a uma entidade religiosa prestadora de serviços de interesse público de deixar suas actividades confessionais em nome da "laicidade estatal", ele está negando vigência ao artigo 19, II, da Constituição


Brasília, 22 de Setembro de 2014 (Zenit.org) Paulo Vasconcelos Jacobina


Recentemente, uma freira me trouxe a notícia de que uma servidora da Secretaria de Educação do Governo do Distrito Federal lhe informara que, no seu planeamento educacional para o ano de 2015, ela deveria considerar retirar as orações e as actividades de natureza religiosa do seu planeamento, cessando qualquer tipo de religiosidade na sua conduta. Uma vez que a creche que a congregação religiosa dirige recebe recursos públicos, e a realização de orações e devoções, segundo a referida servidora pública, "violaria o Estado laico". Em leve tom de ameaça, a servidora pública sugeriu enfaticamente à freirinha que "considerasse seriamente esta sugestão".

Esta situação ocorreu dias depois de outra igualmente preocupante: estive num grande escritório de contabilidade empresarial com outra freira, de uma congregação profundamente dedicada ao atendimento dos "mais pobres dos pobres", cuja regra de vida, aliás, impede terminantemente que a instituição receba quaisquer recursos públicos. Mas como a Congregação emprega ajudantes e atende pessoas carentes, consome água e energia, além de gerar tributos por posse de imóveis, precisa de cadastros infindáveis em diversos Ministérios do Governo Federal, além de entidades congéneres das esferas estadual e municipal nos diversos locais em que actua. Exige-se-lhe inclusive a contratação de responsáveis técnicos na área de psicologia, pedagogia e serviço social, além de cadastros nos diversos órgãos profissionais respectivos. As despesas com actividades burocráticas de uma entidade que não recebe, nem pretende receber, recursos públicos, e que pretende apenas exercer a caridade, ou seja, o acolhimento amoroso dos que não são lembrados nem pelo próprio Estado, são volumosas e saem das doações privadas de leigos comprometidos e empresas com responsabilidade social.

Estas religiosas muitas vezes têm dificuldade de apoio na própria estrutura formal da Igreja, que já tem problemas suficientes para sobreviver perante suas próprias dificuldades burocráticas, e deixa de se posicionar mais agudamente frente a um Estado que cresce e se torna cada vez mais ameaçador para quem quer actuar na actividade de assistência social como reflexo das suas convicções religiosas. É como, por um lado, se a própria manifestação ostensiva de pertença religiosa dessas instituições fosse quase uma atitude inaceitável perante um Estado cada vez mais dominado pelas ideologias ateístas, e, por outro, como se fosse quase uma concessão estatal precária que alguém possa ter acesso aos pobres fora das estruturas estatais e burocráticas - uma monopolização da miséria pelos órgãos estatais e suas ONGs de viés para-partidário.

É relevante perceber que o Estado brasileiro tem criado uma série de facilidades para a pequena actividade empresarial, como as "micro-empresas individuais" que gozam de sistema tributário facilitado, mas para a actividade de caridade há apenas a multiplicação de exigências e burocracia, mesmo quando não há, nem se pretende que haja, aporte de recursos públicos nestas entidades. Se os pequenos empresários podem gozar de um sistema simplificado de recolhimento, as pequenas entidades religiosas sofrem cada vez mais com um sistema absurdo de exigências burocráticas, que culminam agora na própria exigência de que abandonem suas próprias convicções religiosas no planeamento das suas actividades, em nome de uma suposta laicidade estatal. Isto é tão absurdamente autoritário que é impressionante que não esteja sendo denunciado como autoritário até por aqueles intelectuais que, embora não tenham convicções religiosas, têm na democracia um pilar das suas próprias convicções. Não há democracia sem liberdade religiosa, e esta pode ser restringida de muitas maneiras, algumas ostensivas, outras subtis, como as que estamos agora vivendo.

Mesmo aquelas entidades religiosas que estabelecem parceria com o Estado, recebendo recursos públicos para desempenhar sua missão social, têm a garantia constitucional plena à sua própria identidade confessional. Quando o art. 19 da Constituição Federal ressalva a colaboração de interesse público entre entidades religiosas e o Estado, ela o faz para garantir que essas entidades possam relacionar-se com o Estado exactamente como são, ou seja, como entidades religiosas. Quando um agente estatal faz uma exigência a uma entidade religiosa prestadora de serviços de interesse público de deixar suas actividades confessionais em nome da "laicidade estatal", ele está escancaradamente negando vigência ao artigo 19, II, da Constituição; nega que as entidades religiosas possam relacionar-se com o Estado sem deixar de ser confessionais. E não se ouve nem as vozes dos juristas, nem as vozes das pessoas comprometidas com o regime democrático e do Estado de Direito contra essa distorção autoritária e negadora do direito constitucional de liberdade religiosa. Não existe religiosidade "privada" ou "teórica", a não ser na mente de quem, além de não ter pessoalmente religião, tornou-se um militante contra a religião. Esta atitude é tão mais perniciosa quando vem embalada numa crescente série de exigências burocráticas e ideológicas cumulativas, afinadas ademais com uma atitude arrogantemente ateia nas universidades e centros de produção intelectual, a ponto de tornar insensível aos próprios católicos a situação alarmante. Precisamos denunciar esta tendência autoritária enquanto a própria possibilidade de denunciar não se torna um crime de lesa-majestade: não há verdadeira liberdade religiosa quando o Estado, por exigências indirectas ou ostensivas, torna inviável que a fé se torne acção.

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