Quando um agente estatal faz uma exigência a uma entidade religiosa prestadora de serviços de interesse público de deixar suas actividades confessionais em nome da "laicidade estatal", ele está negando vigência ao artigo 19, II, da Constituição
Brasília, 22 de Setembro de 2014 (Zenit.org) Paulo Vasconcelos Jacobina
Recentemente, uma freira me trouxe a notícia de que uma
servidora da Secretaria de Educação do Governo do Distrito Federal lhe
informara que, no seu planeamento educacional para o ano de 2015, ela
deveria considerar retirar as orações e as actividades de natureza
religiosa do seu planeamento, cessando qualquer tipo de religiosidade
na sua conduta. Uma vez que a creche que a congregação religiosa dirige
recebe recursos públicos, e a realização de orações e devoções, segundo a
referida servidora pública, "violaria o Estado laico". Em leve tom de
ameaça, a servidora pública sugeriu enfaticamente à freirinha que
"considerasse seriamente esta sugestão".
Esta situação ocorreu dias depois de outra igualmente preocupante:
estive num grande escritório de contabilidade empresarial com outra
freira, de uma congregação profundamente dedicada ao atendimento dos
"mais pobres dos pobres", cuja regra de vida, aliás, impede
terminantemente que a instituição receba quaisquer recursos públicos.
Mas como a Congregação emprega ajudantes e atende pessoas carentes,
consome água e energia, além de gerar tributos por posse de imóveis,
precisa de cadastros infindáveis em diversos Ministérios do Governo
Federal, além de entidades congéneres das esferas estadual e municipal
nos diversos locais em que actua. Exige-se-lhe inclusive a contratação de
responsáveis técnicos na área de psicologia, pedagogia e serviço
social, além de cadastros nos diversos órgãos profissionais respectivos.
As despesas com actividades burocráticas de uma entidade que não recebe,
nem pretende receber, recursos públicos, e que pretende apenas exercer a
caridade, ou seja, o acolhimento amoroso dos que não são lembrados nem
pelo próprio Estado, são volumosas e saem das doações privadas de leigos
comprometidos e empresas com responsabilidade social.
Estas religiosas muitas vezes têm dificuldade de apoio na própria
estrutura formal da Igreja, que já tem problemas suficientes para
sobreviver perante suas próprias dificuldades burocráticas, e deixa de
se posicionar mais agudamente frente a um Estado que cresce e se torna
cada vez mais ameaçador para quem quer actuar na actividade de assistência
social como reflexo das suas convicções religiosas. É como, por um
lado, se a própria manifestação ostensiva de pertença religiosa dessas
instituições fosse quase uma atitude inaceitável perante um Estado cada
vez mais dominado pelas ideologias ateístas, e, por outro, como se fosse
quase uma concessão estatal precária que alguém possa ter acesso aos
pobres fora das estruturas estatais e burocráticas - uma monopolização
da miséria pelos órgãos estatais e suas ONGs de viés para-partidário.
É relevante perceber que o Estado brasileiro tem criado uma série de
facilidades para a pequena actividade empresarial, como as "micro-empresas
individuais" que gozam de sistema tributário facilitado, mas para a actividade de caridade há apenas a multiplicação de exigências e
burocracia, mesmo quando não há, nem se pretende que haja, aporte de
recursos públicos nestas entidades. Se os pequenos empresários podem
gozar de um sistema simplificado de recolhimento, as pequenas entidades
religiosas sofrem cada vez mais com um sistema absurdo de exigências
burocráticas, que culminam agora na própria exigência de que abandonem
suas próprias convicções religiosas no planeamento das suas actividades,
em nome de uma suposta laicidade estatal. Isto é tão absurdamente
autoritário que é impressionante que não esteja sendo denunciado como
autoritário até por aqueles intelectuais que, embora não tenham
convicções religiosas, têm na democracia um pilar das suas próprias
convicções. Não há democracia sem liberdade religiosa, e esta pode ser
restringida de muitas maneiras, algumas ostensivas, outras subtis, como
as que estamos agora vivendo.
Mesmo aquelas entidades religiosas que estabelecem parceria com o
Estado, recebendo recursos públicos para desempenhar sua missão social,
têm a garantia constitucional plena à sua própria identidade
confessional. Quando o art. 19 da Constituição Federal ressalva a
colaboração de interesse público entre entidades religiosas e o Estado,
ela o faz para garantir que essas entidades possam relacionar-se com o
Estado exactamente como são, ou seja, como entidades religiosas. Quando
um agente estatal faz uma exigência a uma entidade religiosa prestadora
de serviços de interesse público de deixar suas actividades confessionais
em nome da "laicidade estatal", ele está escancaradamente negando
vigência ao artigo 19, II, da Constituição; nega que as entidades
religiosas possam relacionar-se com o Estado sem deixar de ser
confessionais. E não se ouve nem as vozes dos juristas, nem as vozes das
pessoas comprometidas com o regime democrático e do Estado de Direito
contra essa distorção autoritária e negadora do direito constitucional
de liberdade religiosa. Não existe religiosidade "privada" ou "teórica",
a não ser na mente de quem, além de não ter pessoalmente religião,
tornou-se um militante contra a religião. Esta atitude é tão mais
perniciosa quando vem embalada numa crescente série de exigências
burocráticas e ideológicas cumulativas, afinadas ademais com uma atitude
arrogantemente ateia nas universidades e centros de produção
intelectual, a ponto de tornar insensível aos próprios católicos a
situação alarmante. Precisamos denunciar esta tendência autoritária
enquanto a própria possibilidade de denunciar não se torna um crime de
lesa-majestade: não há verdadeira liberdade religiosa quando o Estado,
por exigências indirectas ou ostensivas, torna inviável que a fé se torne
acção.
(22 de Setembro de 2014) © Innovative Media Inc.
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