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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Abusos Sexuais

A recente notícia sobre a investigação de abusos sexuais praticados na Igreja francesa nos últimos setenta anos, assim como outras semelhantes, fazem sempre com que me venha à mente a minha experiência profissional quase quotidiana. Na verdade, na minha função de juiz desembargador tenho ocasião de lidar com recursos de condenações (muitas delas em penas das mais graves) por abusos sexuais de crianças e adolescentes. Quase não há semana em que não passe por mim um desses recursos, ou venha ao meu conhecimento um recurso apreciado por um dos meus colegas.

Desta minha experiência, que obviamente não serve para tirar conclusões próprias de um estudo científico, pode retirar-se a evidência de que este fenómeno é, em todos os âmbitos da sociedade, mais frequente do que muitos imaginarão.

Não faço esta afirmação para de algum modo relativizar ou atenuar a gravidade da prática de abusos sexuais por parte de sacerdotes ou em ambientes eclesiais. Seria de esperar que neste âmbito esse fenómeno, pura e simplesmente, não existisse, não que existisse numa escala mais ou menos equiparável à que existe noutros âmbitos.

Também será de salientar que há especificidades ligadas à prática de abusos sexuais por parte de sacerdotes em âmbitos da Igreja que não se verificam nos casos que chegam ao meu conhecimento. Por outro lado, a grande maioria dos casos analisados na investigação solicitada pelos bispos franceses situa-se em épocas bastante recuadas no tempo, quando não havia uma tão clara perceção social da gravidade dos danos causados às vítimas. Os casos que chegam ao meu conhecimento são atuais, de uma época em que são mais do que evidentes esses danos e dizem respeito aos mais variados âmbitos sociais. Esta minha reflexão poderá alertar para a necessidade de alargar a toda a sociedade os esforços de prevenção e de cuidado para com as vítimas que têm sido empreendidos pela Igreja Católica em vários países nos tempos mais recentes.

Com isto quero dizer que o facto de este fenómeno não ser específico dos ambientes eclesiais não serve para relativizar a gravidade da sua existência nesses ambientes, mas serve para que outras instituições, e a sociedade em geral, não o descure, nem descure os danos que provoca nas vítimas, como na Igreja se procura fazer hoje.

Os casos que chegam ao meu conhecimento dizem respeito a pessoas (agentes dos crimes) de todos os extratos socias, de todos os graus de instrução e de todas as profissões (incluindo professores, médicos ou enfermeiros). A maior parte dos crimes ocorre em ambientes domésticos, praticada pelo pai, mais frequentemente pelo companheiro da mãe, ou por outro familiar. Mas não só. As modernas tecnologias de comunicação potenciam a prática de alguns desses crimes e a facilidade com que adolescentes partilham imagens íntimas até com desconhecidos leva ao seu aproveitamento por adultos. O tipo de práticas é indescritível e daria matéria para a mais sórdida pornografia. A posse de pornografia infantil muitas vezes coincide com a prática dos atos nela retratados.

Essas práticas denotam desequilíbrios psíquicos graves que exigem um acompanhamento especializado, que escapa aos meus conhecimentos. Mas, como juiz, não posse reduzir o problema a essa dimensão. Quase nunca se coloca a questão da inimputabilidade, ou sequer da imputabilidade diminuída, dos agentes dos crimes. Tal significa que eles podem, e devem, ser responsabilizados pelos seus atos. Se assim não fosse, não teria sentido qualquer condenação numa pena, nem a severidade das penas normalmente aplicadas. Há, pois, uma dimensão ética dos comportamentos em causa que não pode ser ignorada.

A respeito desta dimensão ética, uma questão me vem à mente, que pode parecer simplista, mas que me parece fundamental e é hoje quase sempre ignorada.

A prática destes crimes não pode ser desligada do generalizado desprezo da ética sexual. Numa sociedade em que parece reduzir-se as exigências da ética sexual à prevenção de doenças e ao respeito pelo consentimento de quem por vezes nem o nome se conhece (consentimento que nas crianças e adolescentes até poderá verificar-se sem que ele assuma relevância), não é estranho que se generalize a prática de abusos sexuais de crianças, adolescentes e adultos.

A ética sexual impõe o autodomínio, o domínio dos impulsos sexuais (por muitos fortes que estes se manifestem), domínio de que hoje pouco se fala, como se, por decorrência da ilimitada liberdade sexual, todos esses impulsos devessem ser satisfeitos. Esse domínio é reflexo do respeito pela dignidade humana, a do próprio e a dos outros. Representa o exercício da verdadeira liberdade. É porque esse domínio é desvalorizado que se praticam crimes sexuais de que são vítimas crianças, adolescentes e adultos. A prevenção desses crimes conforme à dignidade humana supõe esse domínio, não é uma questão hormonal que se resolva com a castração química.  

Pedro Vaz Patto


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