Desta
minha experiência, que obviamente não serve para tirar conclusões próprias de
um estudo científico, pode retirar-se a evidência de que este fenómeno é, em
todos os âmbitos da sociedade, mais frequente do que muitos imaginarão.
Não
faço esta afirmação para de algum modo relativizar ou atenuar a gravidade da
prática de abusos sexuais por parte de sacerdotes ou em ambientes eclesiais.
Seria de esperar que neste âmbito esse fenómeno, pura e simplesmente, não
existisse, não que existisse numa escala mais ou menos equiparável à que existe
noutros âmbitos.
Também
será de salientar que há especificidades ligadas à prática de abusos sexuais
por parte de sacerdotes em âmbitos da Igreja que não se verificam nos casos que
chegam ao meu conhecimento. Por outro lado, a grande maioria dos casos analisados
na investigação solicitada pelos bispos franceses situa-se em épocas bastante
recuadas no tempo, quando não havia uma tão clara perceção social da gravidade
dos danos causados às vítimas. Os casos que chegam ao meu conhecimento são
atuais, de uma época em que são mais do que evidentes esses danos e dizem
respeito aos mais variados âmbitos sociais. Esta minha reflexão poderá alertar
para a necessidade de alargar a toda a sociedade os esforços de prevenção e de
cuidado para com as vítimas que têm sido empreendidos pela Igreja Católica em
vários países nos tempos mais recentes.
Com
isto quero dizer que o facto de este fenómeno não ser específico dos ambientes
eclesiais não serve para relativizar a gravidade da sua existência nesses
ambientes, mas serve para que outras instituições, e a sociedade em geral, não
o descure, nem descure os danos que provoca nas vítimas, como na Igreja se
procura fazer hoje.
Os
casos que chegam ao meu conhecimento dizem respeito a pessoas (agentes dos
crimes) de todos os extratos socias, de todos os graus de instrução e de todas
as profissões (incluindo professores, médicos ou enfermeiros). A maior parte
dos crimes ocorre em ambientes domésticos, praticada pelo pai, mais
frequentemente pelo companheiro da mãe, ou por outro familiar. Mas não só. As
modernas tecnologias de comunicação potenciam a prática de alguns desses crimes
e a facilidade com que adolescentes partilham imagens íntimas até com
desconhecidos leva ao seu aproveitamento por adultos. O tipo de práticas é
indescritível e daria matéria para a mais sórdida pornografia. A posse de
pornografia infantil muitas vezes coincide com a prática dos atos nela
retratados.
Essas
práticas denotam desequilíbrios psíquicos graves que exigem um acompanhamento
especializado, que escapa aos meus conhecimentos. Mas, como juiz, não posse
reduzir o problema a essa dimensão. Quase nunca se coloca a questão da
inimputabilidade, ou sequer da imputabilidade diminuída, dos agentes dos crimes.
Tal significa que eles podem, e devem, ser responsabilizados pelos seus atos.
Se assim não fosse, não teria sentido qualquer condenação numa pena, nem a
severidade das penas normalmente aplicadas. Há, pois, uma dimensão ética dos
comportamentos em causa que não pode ser ignorada.
A
respeito desta dimensão ética, uma questão me vem à mente, que pode parecer
simplista, mas que me parece fundamental e é hoje quase sempre ignorada.
A
prática destes crimes não pode ser desligada do generalizado desprezo da ética
sexual. Numa sociedade em que parece reduzir-se as exigências da ética sexual à
prevenção de doenças e ao respeito pelo consentimento de quem por vezes nem o
nome se conhece (consentimento que nas crianças e adolescentes até poderá
verificar-se sem que ele assuma relevância), não é estranho que se generalize a
prática de abusos sexuais de crianças, adolescentes e adultos.
A
ética sexual impõe o autodomínio, o domínio dos impulsos sexuais (por muitos
fortes que estes se manifestem), domínio de que hoje pouco se fala, como se,
por decorrência da ilimitada liberdade sexual, todos esses impulsos devessem
ser satisfeitos. Esse domínio é reflexo do respeito pela dignidade humana, a do
próprio e a dos outros. Representa o exercício da verdadeira liberdade. É porque
esse domínio é desvalorizado que se praticam crimes sexuais de que são vítimas
crianças, adolescentes e adultos. A prevenção desses crimes conforme à
dignidade humana supõe esse domínio, não é uma questão hormonal que se resolva
com a castração química.
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