“Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada”.
Que sugestão mais arrebatadora poderia, para quem acreditava poder moldar todo o mundo à sua manera, querer? No atordoamento de frases inspiradores, a minha agenda fazia-me sonhar cada dia. Ela passou a ser a minha confidente mais íntima. Olhava-a, acariciava-a e escrevia-lhe bocados da minha vida. Eram pensamentos, descobertas, ânimos, encontros, por vezes desencontros, tristezas e desencantos. Com ritmo, assim escrevinhei no Inverno, as rajadas de vento da temporada, deixar entrar a Primavera na minha agenda por entre os pingos de tinta azul. Salpicou-se de sal, nas praias do Verão. No Outono, ficava bem fechada no meu saco-de-mão para que os chuviscos não amarrotassem as folhas à espera de serem escritas e, sem me aperceber, despedi-me dela no Natal! Tinha passado um ano na companhia desta agendinha bem-amada, que “gostava de mim todos os dias”, que tinha sido fonte de inspiração quotidiana, mas que agora, estava ali, consumida, sufocada de tinta, sem mais dias para dar. Para grande desgosto meu, entrou na gavetinha das recordações.
O certo é que durante esse tempo, não pensei na pessoa que me oferecera a agenda. Ou talvez sim, indirectamente, tenha correspondido a essa mostra de afeição com o carinho e enlevo com que abria, lia, fechava e apontava as gatafunhices da minha vida. Mas, não procurei um relacionamento maior com esta pessoa, que, segurantemente, não teria consumido a sua amizade no final do ano, como foi o caso do meu caderninho. Dei-me conta de que a minha agenda não era mais do que o meu espelho e que num movimento redondo comunicava de mim para mim através ela, num processo que se consumia como as folhas da minha agenda. Faltava na minha vida algo que não caducasse, tal como eu, mas que fosse um “outro”, a alteridade! E comecei numa busca, num movimento que já não era narcísico, mas comunicativo, para fora de mim, em diversas trajetórias retilíneas e distantes. Estava a despedir-me da adolescência, para me aventurar no relacionamento com o que estava para além da minha órbita, com aquilo que eu não podia nem absorver nem transformar em mim mesma. Por essa ocasião, reli umas frases do “Caminho”, um livro de um grande autor de espiritualidade, S. Josemaria Escrivá e deparei com um ponto especialmente inspirador, para a nova fase da vida que começava a madurar em mim. Dizia: “Escreveste-me: orar é falar com Deus. Mas, de quê?” — De quê?! D’Ele e de ti; alegrias, tristezas, êxitos e fracassos, ambições nobres, preocupações diárias..., fraquezas; acções de graças e pedidos; de Amor e desagravo. Em duas palavras: conhecê-Lo e conhecer-te – ganhar intimidade!”.
Fiquei intrigada. Até à data, tinha intimidade com a minha agenda, com ela falava de êxitos e fracassos e os demais segredos da minha existência. Poderia Deus substituir-se à minha amiga velhinha? Talvez sim, pensava eu e com a vantagem que não se gastava nunca, poderia contar-lhe o mesmo, mas sem páginas a esgotarem-se. Além de mais, Deus estaria sempre disposto a ouvir as minhas confidências e talvez me trouxesse inspirações maiores do que as dos grandes escritores da minha agenda, e sempre sem limites. Experimentei contar-lhe os meus segredos. Percebi que o novo Amigo era mais discreto que a minha agenda, mas mais barulhento e operante, sempre sussurrando para que o ouvisse. Não me deixou nunca mais ficar sozinha comigo mesma. Ele não queria ser apenas uma outra agenda cativante, queria que eu também fosse a sua agenda, que gostasse dele todos os dias! Não era só falar-Lhe, era preciso ouvir muito; não era só receber, era também dar. Pouco a pouco, um horizonte existencial, multicolor abria-se, vertiginoso, mas fascinante e muito, muito mais diversificado do que o da minha vidinha feita de papel de agenda. Com a descoberta da oração, a minha vida transformava-se num quadro com relevo, perspetiva, luzes e sombras, multidimensional, onde as frases tinham conteúdo e originavam aventuras, tais como a de descobrir o “toque divino” nas múltiplas atividades do quotidiano, como dizia S. Josemaria. A partir daí, todas as agendas que se seguiram foram ganhando a forma que a oração dava às letras ou aos caracteres (nas recentes agendas virtuais). Elas deixaram de ser confidentes, para serem espectadoras desse diálogo com Deus, nem sempre conseguido, já que numa relação de alteridade sempre algo nos escapa. Foram testemunhas de que Ele gosta de mim todos os dias e que eu tento gostar d’Ele todos os dias. E, então, percebi que esta história de trocas de intimidade duraria toda a vida e que poderia ser feliz para sempre.
Maria do Rosário Homem Administradora na Comissão Europeia |
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