As possíveis implicações do diálogo entre a China e a Santa Sé depois da viagem do Papa a Coreia. Entrevista com o padre Bernardo Cervellera, director da Asia News
Roma, 20 de Agosto de 2014 (Zenit.org) Salvatore Cernuzio
"A abertura para a China", foi, na opinião de muitos, um dos
pontos-chave da viagem de Francisco na Coreia do Sul. Mas o que fez o
Papa parece ser só um primeiro passo em direcção a um objectivo difícil de
alcançar: um verdadeiro diálogo entre Pequim e a Santa Sé. Um diálogo
já desejado pelos seus antecessores e que Bergoglio quer que seja,
primeiro, fraterno, depois, político. Um diálogo que só pode ser
alcançado quando caiam certos muros calcificados ao longo do tempo por
medos e preconceitos. E o tratamento que o governo chinês dará aos 300
jovens que foram "ilegalmente" para a Jornada da Juventude asiática será
um teste a este respeito. De tudo isto ZENIT conversou com o padre
Bernardo Cervellera, director da famosa agência Asia News, um
especialista em Ásia e Extremo Oriente, na longa entrevista que
publicamos abaixo.
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ZENIT: Qual gesto ou discurso do Papa na Coreia do Sul, na sua opinião, tem um significado “histórico”?
Pe. Cervellera: São muitos porque o Papa é uma personalidade completa
e em tudo o que faz envia uma mensagem... No entanto, na minha opinião,
o gesto mais importante também para a cultura asiática tem sido o
abraço às pessoas com deficiência, ter brincado e passado tempo com as
crianças abandonadas, os idosos. De fato, ali se vê a ferida da Ásia e
do Extremo Oriente, um mundo que respeitava os idosos, amava as
crianças, queria famílias numerosas; em vez disso, a secularização e o
rápido desenvolvimento económico dos últimos tempos afectou as pessoas
enviando todos ao trabalhar por 12-13 horas por dia, deixando os idosos e
as crianças sozinhas em casa ou em instituições e assim por diante.
Acima de tudo, em nome do trabalho ou para economizar dinheiro
(considerando também o alto custo de vida), muitas vezes abortos ou
eliminações de deficientes se tornam coisas normais, mesmo que isso
esteja em desacordo com a tradição original. Este é um julgamento, por
um lado, de sociedade moderna que tornou-se desumana e de um
desenvolvimento económico que não tem mais o homem no centro, mas o
lucro; por outro lado, sobre certas tradições religiosas ancestrais de
todo o Oriente, para as quais os deficientes são considerados um peso ou
uma vergonha.
ZENIT: Como você interpreta as "aberturas" que o Papa
Francisco ofereceu para a China: das palavras no discurso aos bispos
coreanos aos dois telegramas para Xi Jinping, onde, entre outras coisas,
o presidente não respondeu...
Pe. Cervellera: Eu não vejo novidade nestas “aberturas”. A verdadeira
novidade é que tenham permitido ao voo papal atravessar o espaço aéreo
chinês, embora tal gesto pareça mais uma “fachada” para salvar a imagem
com a comunidade internacional. Se tivesse proibido que o avião
sobrevoasse o seu território, a China teria, de fato, transmitido uma
imagem de si realmente de antes dos anos 60-70. Com relação às aberturas
do Papa, acho que todas as mensagens de Francisco, o desejo de ir à
China “amanhã mesmo” como disse na conferência de imprensa no voo de
regresso, já estão dentro da história de João Paulo II e de Bento XVI. O
desejo de abrir uma relação com a China ou um diálogo com os países com
os quais não se tem relações diplomáticas (actualmente a Coreia do
Norte, Laos, Myanmar e Vietname n.d.a) todos os Papas disseram desde o dia
das suas eleições.
ZENIT: Portanto, na sua opinião, não existe um factor de
novidade na abordagem de Bergoglio sobre o tema com relação aos de seus
antecessores?
Pe. Cervellera: Acho que o "belo e bom", o mais importante entre as
coisas que disse o Papa Bergoglio até agora seja: "Eu não penso tanto no
diálogo político, penso no diálogo fraterno". Esta é a novidade! Todos
aqueles - jornalistas e não, observadores da China, personalidades do
Vaticano - que pensam que as relações diplomáticas entre a China e a
Santa Sé sejam a coisa mais importante, a prioridade para se trabalhar,
foram desmentidos pelo Papa que disse: "Sim, isso deve ser feito, mas
pensemos primeiro nas relações fraternas, num diálogo entre pessoas...
", ou seja, num desejo de fazer-se o bem mutuamente, muito além das
classificações políticas e dos tratados bilaterais.
ZENIT: Alguns dizem que com este Papa latino-americano se
oferece uma imagem do Pontífice não como "expressão do poder ocidental".
O bicho-papão é, portanto, ainda aquele do ocidentalismo imperante ou
dos cristãos conquistadores? No entanto, Bento XVI tinha deixado claro
com firmeza na sua carta aos chineses do 2007 (citada pelo próprio
Papa), afirmando que "a Igreja Católica que está na China não tem a
missão de mudar a estrutura ou a administração do Estado, mas sim de
anunciar Cristo aos homens "...
Pe. Cervellera: Bah... Sim, algumas pessoas pensam que o fato do papa
ser latino-americano facilite as coisas, mas eu não estou de acordo. Na
verdade eu acho que há uma grande continuidade entre os três últimos
papas a este respeito. Não me digam que João Paulo II era um
representante da política ocidental! Logo ele que colocou-se contra todo
o mundo ocidental que queria a guerra com o Iraque e disse "Não". E
Bento XVI? O Papa emérito que no discurso de Regensburg atacou a cultura
ocidental racionalista que justamente se baseia na dominação e
exploração. Infelizmente aquele discurso foi banalizado por todos,
reduzindo-o a uma frase citada do famoso Miguel o Paleólogo que fizeram
parecer como se fosse um ataque contra o Islã... Na verdade o discurso
de Regensburg é justamente uma crítica dura ao racionalismo da cultura
ocidental e, portanto, do colonialismo, à tentação de domínio inerente à
cultura ocidental.
ZENIT: O diálogo com a China, no entanto, permaneceu uma
estrada inacabada nos pontificados anteriores. Com Bergoglio seria
possível dar passos mais concretos?
Pe. Cervellera: Eu não sei. Mas posso dizer que este Papa tem uma
potência a mais, e é a de mostrar-se indefeso, humilde, que de alguma
forma "arrisca” pessoalmente. Talvez com os outros papas, se entendia
que por detrás havia uma Curia, um Ministério do Exterior, um aparato.
Francisco se coloca pessoalmente no campo e diz: "Eu não me importo que
algum político chinês venha ao Vaticano, ou vice-versa, estou
interessado no diálogo entre eu e tu, entre Francisco e Xi Jinping,
entre o Papa e um chinês...". Porque através da compreensão um do outro,
da descoberta dos preconceitos tudo se tornaria mais fácil. Ele já
superou certos preconceitos dizendo: "Olhem que os cristãos não vêm para
conquistar nada. Não vêm para destruir as culturas, mas sim para
fortalecê-las". Hoje o reiterou ainda mais claramente na sua catequese
da audiência geral.
ZENIT: Esta é, portanto, a posição da Santa Sé. Por outro
lado, no entanto, qual é posição? De acordo com o porta-voz do
Ministério das Relações Exteriores chinês, Hua Chunying, "a China sempre
foi sincera ao melhorar as suas relações com o Vaticano e sempre fez
esforços positivos neste sentido". Estas afirmações são verdadeiras para
você?
Pe. Cervellera: Esta é a única resposta oficial. No entanto, me
parece um pouco condicionada, no sentido de que foi uma agência francesa
que pediu especificamente uma declaração para o ministro que, em
seguida, deu uma resposta que, de fato, evita a verdadeira resposta.
Todos, de fato, em primeiro lugar os jornalistas, aplaudiram estas
palavras: "A China sempre pensou em melhorar as relações!". Mas se a
China sempre pensou em melhorar as relações, como é possível que desde
2007 exista uma carta de Bento XVI para o governo chinês, com sugestões
sobre como abrir um diálogo e que ainda não foi respondida? Em sete
anos, nunca encontraram tempo para responder?
ZENIT: Uma resposta agora, por exemplo, poderia ser o
tratamento que o governo vai dar aos 300 jovens que, apesar das pressões
e ameaças, participaram da Jornada da Juventude Asiática?
Pe. Cervellera: Sim, isso seria uma resposta concreta, por duas
razões. Primeiro de tudo, para ver o andamento da política chinesa que
mostra claramente como a China ainda não saiba como agir com o Vaticano e
a Igreja Católica. Até fevereiro, de fato, havia cerca de 150 jovens
que queriam ir para a Coreia e as autoridades deram a permissão. Parecia
não haver nenhum problema. Porém, quando houve o anúncio por volta de
maio que o Papa estaria lá, começou todo um trabalho da Frente Unida,
Departamento de Assuntos religiosos, autoridades provinciais e locais
para convencer, ameaçar, bloquear aqueles que queriam participar. Até os
empregadores e os directores das escolas participaram desta campanha
dissuasiva dizendo aos meninos para não ir, porque "é uma coisa
proibida", "não queremos que vocês sejam doutrinados pelo Papa”, etc.
Portanto, tiraram o passaporte de alguns, ameaçaram outros de perder
seus empregos e assim por diante.
Isso prova o que eu disse: a China ainda não sabe como agir com
relação ao Vaticano, não entendeu que o Papa é uma pessoa de fé, não um
líder político que conspira contra os chineses. A história dos 300
jovens destaca também que a Igreja agora na China vê como um obstáculo
inútil todos os limites à liberdade religiosa. Todos esses jovens
fizeram um slalom contra as diversas proibições e foram assim mesmo para
a Coreia, assumindo os riscos e o perigo. Esperemos agora que ao voltar
não sofram retaliações...
ZENIT: Nada se sabe ainda sobre isso?
Pe. Cervellera: Nós não ouvimos nada, até mesmo porque agora há um
controle espasmódico de celulares, sites... Em qualquer caso, este será o
teste decisivo: todos aqueles que dizem que começou uma nova era entre a
China e o Vaticano verifiquem, por favor, o que acontecerá com estes
jovens. Se não lhes acontecer nada, então, esse será um maravilhoso
sinal de novidade por parte da China; se acontecer algo quer dizer que a
China ainda vive atrasada no tempo e não sabe o que fazer.
ZENIT: À luz de tudo isso, na sua opinião, é possível ou não
um novo curso entre a Santa Sé e Pequim? Ou o ramo de oliveira estendido
pelo Pontífice permanecerá sem resposta como os dois telegramas para o
presidente?
Pe. Cervellera: A minha impressão é que não há um novo curso, mas um
novo impulso por parte da Igreja, do Papa e do Vaticano para dizer
"Então, China, quer se tornar um país moderno e permitir a liberdade
religiosa aos cristãos e às outras religiões?". Também porque a Coreia
demonstrou claramente o que a Igreja faz para o desenvolvimento da
sociedade, do homem, da reconciliação dos povos ... E então "entende o
que você está perdendo, China, no bloqueio dos cristãos?". Por agora
vejo este ímpeto da Igreja, onde, ao mesmo tempo, existe um medo por
parte do governo de Pequim em responder.
ZENIT: Por que esse medo?
Pe. Cervellera: Por que, de fato, o Partido Comunista da China ainda
está dividido entre aqueles que querem preservar os privilégios do
monopólio do poder do partido não admitindo assim nenhum tipo de
liberdade de religião; e aqueles que, pelo contrário, dando a volta ao
mundo e observando os outros países, vêem que a liberdade religiosa é um
alimento que pode produzir frutos bons na sociedade. Por exemplo, a
cura dos deficientes e dos migrantes que são muitíssimos na China, mas
que não tem ninguém que cuide deles. Os chineses estão divididos no
individualismo entre um grupo e outro, entre uma província e outra, e a
Igreja poderia oferecer uma oportunidade de reconciliação. Enquanto,
porém, não "vença" a parte mais liberal, será difícil ter alguma chance
de diálogo.
(20 de Agosto de 2014) © Innovative Media Inc.
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