O cardeal Cristoph Schönborn, arcebispo de Viena (Áustria), acusa implicitamente o antigo secretário de Estado do Vaticano, Angelo Sodano, de ter encoberto abusadores. Numa conferência em Viena, no final da semana passada, Schönborn caracterizou ainda o abuso sexual de membros do clero como uma “realidade massiva” na Igreja, causada entre outros factores por “sistemas fechados” e pela extrema soberba de muitos padres.
Numa conferência na Universidade de Viena sobre “O abuso sexual de menores: crime e responsabilidade”, citada pelo The Tablet, o cardeal austríaco disse que foi depois de ter escutado vítimas de abuso durante 20 anos que chegou à conclusão de que o abuso espiritual e sexual dos clérigos – e sobretudo o abuso do poder clerical – era uma “realidade massiva” na estrutura eclesiástica.
Ainda de acordo com a mesma fonte, Schönborn referiu depois uma história por ele vivida, acusando implicitamente o cardeal Angelo Sodano, decano do Colégio Cardinalício, de mentir e encobrir casos.
“Na minha controvérsia com o cardeal [Angelo] Sodano, ele disse literalmente na minha cara: ‘Vítimas? Isso é o que você diz.’” Dois meses depois dessa conversa, contou ainda, Schönborn foi chamado a Roma, sendo obrigado, diante do Papa Bento XVI, a pedir desculpas ao antigo secretário de Estado do Vaticano (que esteve no cargo no tempo de João Paulo II, entre 1991 e 2006].
Na origem do caso, estivera o antecessor de Schönborn, o cardeal Hans Hermann Groër, acusado de abusos. Em 1995, depois de tomar posse como arcebispo de Viena, o cardeal entrou em contacto com vítimas de Groër. Depois de três anos a escutar várias pessoas que tinham sido abusadas, ficou convencido de que elas tinham dito a verdade. Pior: foi “traumático descobrir como o abuso sexual clerical está intimamente ligado ao sacramento da reconciliação e descobrir que muitas vezes ele começa no confessionário”.
O que o cardeal aprendeu com as vítimas
Em Março de 1998, Schönborn e mais três bispos austríacos afirmaram ter a “certeza moral” de que as alegações contra Groër eram, “no essencial”, correctas. Foi essa afirmação que provocou a ira de Sodano. “Mas era necessário falar publicamente numa situação em que os clérigos estavam a mentir abertamente sobre o que tinha acontecido”, justificou o cardeal na conferência.
“Quando insisto que acredito numa vítima, estou a falar como se fosse um diagnóstico. A conversa com uma vítima de abuso não é um processo legal. (…) Não falo sobre esse doloroso assunto como especialista, mas como alguém que foi repetidamente confrontado com abusos e que aprendeu muito sobre isso – mas certamente não o suficiente”, disse ainda, sempre citado pela mesma fonte.
E o que aprendeu o cardeal? Que as vítimas levam décadas até conseguir falar sobre o assunto; que os abusadores usavam “todos os meios disponíveis” para tentar calar as suas vítimas; que estas, quando falam, sofrem um segundo trauma; os padres abusadores usavam o argumento de que seria pecado grave divulgar o abuso e levavam as vítimas, diante do sacrário, a jurar que não o fariam; e que só falando as vítimas se poderiam curar.
Schönborn referiu-se ainda criticamente ao diagnóstico feito pelo Papa emérito Bento XVI, de quem chegou a ser considerado muito próximo: “Bento XVI tentou um diagnóstico que não desejo criticar, mas apenas quero corrigir citando alguns números. Bento XVI é de opinião que o abuso sexual clerical tem suas origens no movimento de 1968. Os números para a Áustria mostram uma imagem totalmente diferente”, afirmou Schönborn. E justificou: “Na Áustria, 60% dos casos de abuso sexual clerical foram cometidos entre 1940 e 1969. O número caiu para 27% entre 1970-79 e desde o ano 2000 era de apenas 0,9%.”
O facto de a maioria dos casos ter ocorrido antes do Concílio Vaticano II [1962-65] é motivo de reflexão para o cardeal. A Igreja pré-conciliar era um sistema fechado e “em sistemas fechados, o abuso ocorre com muito mais frequência do que em sistemas abertos”, afirmou. E autoridade do clero, nesse sistema, tinha uma extensão “doentia”. E o facto de a Igreja Católica na Áustria ter fechado internatos também levou à queda do número de casos.
Movimentos fechados e personalidades-guru
Cristoph Schönborn referiu-se ainda, sempre segundo o Tablet, ao caso de vários dos novos movimentos, igualmente “instituições fechadas” que facilitavam o abuso, apontou. O seu antecessor, cardeal Groër, bem como o fundador dos Legionários de Cristo, padre Marcial Maciel, o padre dominicano Marie-Dominique Philippe, fundador da Comunidade de São João, Gérard Criossant, fundador da Comunidade das Bem-Aventuranças e o padre Fernando Karadima foram exemplos de “personalidades-guru” que influenciaram a formação e as carreiras de dezenas de padres e de vários bispos.
O padre Maciel, recorda por seu turno o Il Messaggero, foi protegido pelo cardeal Sodano. Só depois de Bento XVI ter sido eleito, em 2005, é que Maciel – consumidor de morfina, que se envolveu também com pelo menos duas mulheres, das quais teve seis filhos, dois dos quais foram igualmente abusados – foi afastado das funções de padre e aconselhado a uma vida de penitência.
Em 2010, o Vaticano considerou o seu comportamento como “objectivamente imoral”, bem como de ter uma vida “desprovida de qualquer escrúpulo e autêntico sentido de religião”.
Já o cardeal Hans Hermann Groër nunca foi sancionado, tendo apenas sido aconselhado apenas a uma vida de oração num mosteiro. Quando morreu em 2003, aos 83 anos, Sodano enviou um telegrama de condolências aos bispos austríacos, manifestava “tristeza” pelo desaparecimento de alguém que dedicara a “sua vida” a Deus, “em fidelidade ao sucessor de Pedro”.
Para o cardeal Schönborn, é claro que “algumas pessoas no Vaticano mentiram” e humilharam as vítimas para “proteger a Igreja”. Mas esta “é melhor servida quando a verdade é revelada”, porque “a verdade vos libertará, diz o Evangelho”, afirmou ainda, citado pelo Il Messaggero.
O cardeal Christoph Schönborn falando a membros do Caminho Neocatecumenal. Foto: Direitos reservados |
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