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domingo, 27 de dezembro de 2020

As Memórias versus a Realidade

Hoje, quando abri o facebook, tinha fotografias de memórias de há um ano atrás. Fiquei emocionada. Fotografias da deslocação a um centro comercial com uma amiga centenária. Que bonitas. Eram as primeiras fotografias já com a decoração de Natal. Recordo como admirámos os diferentes presépios tão bonitos. Estávamos felizes com um grande sorriso nas nossas faces. Não sabíamos que seria o último Natal que passaríamos juntas! Faleceu recentemente confortada com a Unção dos Doentes. Por esse motivo, acredito que agora, se Deus quiser, na companhia de Jesus, José e Maria, bem como dos seus entes queridos velará por nós. Recordo-a com uma divida de gratidão pela sua boa companhia, alegria, lucidez, ternura que tão bem expressava. Como ficava feliz quando a ia buscar ao lar onde se encontrava há alguns anos por força da sua idade muito avançada e alguns problemas de saúde. Admirava o movimento, a cor das árvores, recordava os lugares que frequentava antigamente. Generosa, brindava a minha neta, que a chamava de “vovó Nela”, com quase tudo o que ela manifestava ser de seu interesse.

Ainda estou a fazer o luto. Sobretudo pelo modo como faleceu. Não me foi possível fazer-lhe companhia nos seus últimos momentos. Tinha combinado fazer-lhe uma visita no dia em que completava os 101 anos. Ultimamente, face ao confinamento imposto, visitava-a semanalmente, algumas vezes através do vidro, outras em videochamada, outras ainda quando esteve muito doente, no quarto, depois de ter recorrido aos serviços hospitalares, protegida por força das circunstâncias que vivenciamos devido à doença SARS-COV-2.

Estranhamente na véspera do seu aniversário, fui comprar algumas lembranças para a mimar. Contudo, travei uma luta interior, já que o meu sexto sentido referia que não valia a pena. E assim seria. No dia seguinte telefonaram-me a dizer que devido a um caso positivo detetado, a visita seria cancelada. Foi possível falar com a minha amiga através de videochamada. Quando a vi fiquei chocada, já que se encontrava no leito, com muitas dores e um olho negro. Disse que ia partir. Referiu ainda que tínhamos passado bons momentos juntas. Que estava preocupada com uma fotografia da minha neta tirada na cerimónia da primeira comunhão. Quem iria ficar com ela? Depois, despediu-se visivelmente cansada. Procurei animá-la como habitualmente. Em condições normais falaríamos durante muito tempo. Desta vez, por motivos óbvios, foi tudo muito rápido. De coração partido perguntei o que tinha. Era um problema respiratório. Atribuí à fibrose pulmonar de que sofria a qual já a tinha levado ao hospital e de que tinha recuperado de um modo admirável, apesar da sua provecta idade. Na altura foi-lhe ministrada a Unção dos Doentes. Interiormente, pensei que tinha de manter a esperança, que iria recuperar novamente, apesar de sentir o contrário. Que tempos difíceis vivenciamos. Mas quando o mundo parece estar a cair é tempo de nos unirmos para tentar enfrentar e ultrapassar a pandemia.

Na verdade foi tudo muito rápido. Dois dias depois tive conhecimento de que tinha testado positivo, que se encontrava muito frágil, que seria transportada para um hospital. Só com a oração a poderia acompanhar. Graças a Deus tinha-lhe sido ministrada há pouco tempo a Unção dos Doentes. No dia seguinte partia para a casa do Pai, sem a nossa presença. Quem teria estado com ela nos seus últimos momentos? Lembrei-me que quando a ia visitar depois de ter estado no hospital, devidamente protegida, referia que agora não conhecia ninguém de tão disfarçados que estávamos. Pensava que um enfermeiro era um dos meus filhos. Talvez nessa hora tenha pensado o mesmo, mas quero expressar o meu agradecimento a quem a tratou e acompanhou nesse momento final. Não haveria velório, iria diretamente para o cemitério. Também não haveria missa de corpo presente. No máximo cinco pessoas no funeral. O sacerdote que a acompanhou nos últimos tempos, e de quem gostava tanto, esteve presente para uma breve oração. Fui acompanhada pelos meus dois filhos. A minha neta estava inconsolável, brincava com uma boneca que a “vovó Nela” lhe tinha oferecido, de que as duas gostavam muito, e que levava algumas vezes quando a ia visitar para ela a rever e brincarem as duas. Com as lágrimas a cair disse: “Nunca conheci ninguém tão bom como a vovó Nela”. Foi tudo muito rápido, muito doloroso. Nunca pensei que o seu final fosse assim. O sacerdote na oração em sufrágio da minha amiga, consolou-nos. Era um momento de ação de graças. Pensei em quantas famílias por esse mundo fora estariam a sofrer com uma situação semelhante ou ainda pior.

A Manuela deixou-nos um legado exemplar de muita alegria de viver, de muita ternura, de muita dignidade e seriedade. De uma memória e de uma lucidez incríveis. Encontrava sempre uma justificação para qualquer situação menos boa que tivesse de enfrentar e seguia em frente. Preocupava-se muito com a sua aparência e o modo como se apresentava. Como ficava vaidosa quando lhe diziam que parecia uma princesa! Uma vez disseram que era uma autêntica lady e era assim que gostava de ser recordada. Acrescentava sempre, com grande humildade: “graças à minha amiga que tem paciência comigo e que me acompanha e aconselha sempre”. Obrigada por tudo o que nos concedeste ao longo da vida. Estarás sempre presente nos nossos corações com muito carinho e saudade.

Ontem o Santo Padre referiu que Jesus Cristo é a Ressureição e a vida e que esta não é uma espécie de miragem que surge ao longe no horizonte, mas um acontecimento presente que nos toca agora. A tristeza negativa trata-se de um sentimento distante da fé. Jesus não nos abandona, permanece connosco fiel à Sua promessa: “Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos”.

A minha neta Maria Luísa acrescentou: “A vovó Nela era muito especial, muito feliz e simpática. Eu gostava muito dela e ela gostava muito de mim, vai estar sempre no meu coração.

Vou-vos contar como foi estar com ela estes nove anos. Lembro-me de quando eu ia com ela ao El Corte Inglês. Era uma festa. Ela sentava-se numa poltrona vermelha e eu ia lá ter com ela, com tantas coisas na mão e pedia-lhe tudo. A vovó perguntava, qual delas eu gostava mais e que queria mesmo. Eu respondia: “Sim, vovó Nela” e escolhia aquela prenda que queria mesmo. Tenho uma boneca que já faz cinco anos, que me deu quando tinha 4 anos de idade. Ela chama-se Jujuba. Tenho outra que tem 3 anos e que se chama Manu, diminutivo de Manuela, o nome da vovó. Lembro-me de quando eu ia com ela ao Restaurante Valbom. Pedia sempre o mesmo prato. Batatas fritas, (que ainda são as minhas preferidas), com um filete e um arroz de tomate muito bom”.

Maria Helena
e Maria Luísa



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