No seu funeral, na próxima terça-feira, 21 de Janeiro, será lida uma pequena oração de despedida que o próprio escreveu para a ocasião. Termina assim: “Possa eu recordar-me o versículo citado por são Paulo: ‘Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará!’ Sobre a tua palavra, Senhor, creio que reviverei com todos os meus e a multidão daqueles por quem tu deste a vida. Então, a terra será renovada e reabilitada e não haverá mais morte, nem medo, nem lágrimas.” O historiador francês Jean Delumeau, autor de Uma História do Paraíso, morreu segunda-feira passada, dia 13, com 96 anos.
Nos quatro curtos parágrafos do texto, que será lido na igreja de São Martinho de Tours, em Cesson-Sévigné (noroeste de França, junto a Rennes, na Bretanha), Delumeau manifesta a sua personalidade profundamente crente. Essa foi uma característica determinante para o seu trabalho como historiador das religiões, dos mitos, dos mecanismos do medo e das prospectivas para o cristianismo contemporâneo.
Leia-se, por exemplo, este parágrafo de síntese: “Estamos presentemente a assistir a uma indiscutível descristianização do mundo actual. Poder-se-á mesmo dizer que o cristianismo está moribundo, que o futuro da Igreja se apresenta sombrio, que a divisão entre os seus membros é cada vez maior.”
Uma leitura do que se passa actualmente, sob o pontificado do Papa Francisco? Este texto foi escrito em 1977, na capa da edição portuguesa do livro O Cristianismo Vai Morrer?, resumindo a ideia e intenção da obra. Publicado no último ano do pontificado de Paulo VI, que morreria no ano seguinte, a actualidade desse livro e da sua leitura da realidade evidenciam a capacidade de Delumeau de, a partir do olhar sobre o passado, ler o presente e antecipar o futuro, sintetizando mesmo algumas intuições do seu percurso.
Especializado nos séculos XVI-XVIII, Jean Delumeau explicava na apresentação do livro porque se aventurara noutros caminhos para além do seu território de investigação: “É em razão de uma problemática e de uma certa visão da história cristã que me decido a sair das fronteiras que tinham sido as minhas até ao presente. Ao denunciar, diante dos factos e dos documentos, o mito tenaz da Cristandade, sou logicamente levado a fazer-me uma certa ideia da evolução actual do Cristianismo. (…) sinto-me autorizado a dizer aos cristãos que o presente é menos sombrio do que eles o imaginam muitas vezes.”
Para que ficasse claro o seu campo, Delumeau acrescentava ainda: “Sobretudo, não tenhamos saudades do passado. Porque a Cristandade de outrora foi muitas vezes uma caricatura do Cristianismo. Os cristãos devem ter a coragem da lucidez e devem nomeadamente compreender porque é que tantos dos nossos contemporâneos sentem pela Igreja repulsa e rancor. Na medida em que ela foi poder, desmentiu constantemente o Evangelho. Temos, portanto, que denunciar resolutamente esta desastrosa contradição e este enorme desvio. Não por masochismo, mas para desobstruir o caminho do futuro.”
A dúvida como sombra
Nascido em Nantes a 18 de Junho de 1923, Delumeau herdou o catolicismo da sua família, de um meio social modesto. Mas rapidamente assumiu um olhar crítico sobre o fenómeno religioso, com a “dúvida como [sua] sombra”, como ele definia. Começou a leccionar História no secundário, passou depois para a universidade e acabou por ser nomeado para o Collège de France, em 1975, ali ensinado “História das mentalidades religiosas no Ocidente moderno”, durante duas décadas. Casara, entretanto, em 1947 e foi pai por três vezes – um dos filhos, Jean-Pierre, é também historiador.
Em 1977, O Cristianismo Vai Morrer? – que venceria o Grande Prémio Católico de Literatura – atraiu a atenção do grande público para o trabalho de Delumeau. A partir daí, a sua bibliografia conta-se por títulos quase todos marcantes na historiografia contemporânea, numa espécie de viagem entre os medos, o paraíso e o futuro: O Medo no Ocidente – séculos XIV-XVIII (1978), O Pecado e o Medo (1983), Uma História do Paraíso (1992-2000), em três volumes, tendo os dois primeiros sido publicados em português, A Religião da (minha) mãe – O papel das mulheres na transmissão da fé (1992), Despertar a Aurora – Um cristianismo para amanhã (2003) ou, já em 2015, aos 92 anos, O Futuro de Deus. Além de ter dirigido obras como As Grandes Religiões do Mundo (publicado pela Presença) ou O Facto Religioso.
Em O Futuro de Deus, como que contrariando Jean-Paul Sartre, escrevia Delumeau: “O paraíso serão os outros, na luz e na proximidade de Deus, numa afeição recíproca que terá apagado todas as incompreensões e hostilidades daqui de baixo.”
Do medo ao paraíso, como “lugar de espera”
As suas obras sobre o medo ajudaram a clarificar a “pastoral do medo”, que Jean Delumeau considerava ter dominado o catolicismo depois da Idade Média até ao Iluminismo, com conceitos como o pecado ou a ameaça do inferno. Mas o historiador dava o contexto a esses temas, como recordava o La Croix: epidemias, épocas de fome, conflitos políticos e guerras religiosas levavam as populações a mergulhar numa “angústia ordinária” difusa e mortífera. Mas, como sugere Emmanuelle Giuliani no mesmo texto, na linha do pensamento de Delumeau: “Ao instaurar uma pastoral do medo, dando-lhe contornos teológicos bem definidos, a Igreja mostrava que era, apesar de tudo, possível agir contra o flagelo do mal. Ao invés das calamidades naturais que se abatem sobre o homem impotente, o pecado e o demónio podiam ser combatidos, mesmo vencidos.”
Esse sentimento do medo tinha o reverso da busca da esperança, notava Pauline Petit no obituário já citado da France Culture. O medo ou o terror – mesmo sob o poder religioso – não eram, no entanto, um fenómeno circunscrito às instituições cristãs. Por seu lado, os três volumes de Uma História do Paraíso mostram “como se passou da nostalgia do jardim do Éden à esperança de um novo paraíso terrestre e como essa esperança se laicizou para dar lugar à noção moderna de progresso”, lê-se ainda no mesmo texto.
Nesse percurso pela ideia do paraíso, Jean Delumeau aborda mesmo, no segundo volume da obra, milenarismo português do rei D. Manuel, de Bandarra e D. Sebastião e do padre António Vieira. A sua viagem leva-o a confrontar começa na Grécia clássica e no judaísmo, para identificar o paraíso como “lugar de espera”. Atravessa, com o contributo da teologia, literatura, ciência ou arte, mitos como o do Preste João ou das ilhas paradisíacas, as procuras da geografia terrestre do paraíso, os milenarismos e as suas violências, até à contemporaneidade e à ideia do progresso.
“Terminei a minha corrida”
O La Croix recorda ainda o “orador emocionante” nas aulas ou conferências, a sua “clareza cristalina”, o seu carácter afável. E ainda sua capacidade de organização, traduzida mesmo na inteligência de terminar cada aula imediatamente antes de o relógio assinalar o momento certo.
No programa La Fabrique de l’histoire (A Fábrica da História) da France Culture, dizia, em 2013: “Não é por ser cristão que devemos dar a bênção a tudo o que o cristianismo fez na História.” Na mesma ocasião, acrescentava que a problemática cristianização-descristianização era o “fio condutor” para compreender a sua obra.
No La Croix, escrevera em 2003: “A mensagem evangélica está intacta. Está simplesmente dissimulada por trás de demasiadas estruturas, demasiada autoridade…”
Terça-feira, no funeral, a sua oração de despedida dirá ainda: “A minha vida teve as suas tristezas e alegrias (…), os seus entusiasmos, ímpetos e esperanças. Terminei a minha corrida. Que eu adormeça na tua paz e no teu perdão! Sê o meu refúgio e a minha luz. Eu me abandono a ti. Vou entrar na terra. Mas que o meu último pensamento seja o da confiança.”
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