A Igreja profissionalizou-se e o clero sabe como gerir uma paróquia mas não sabe estar presente, diz o padre jesuíta e teólogo James Keenan. Em entrevista conjunta ao 7MARGENS e ao PontoSJ este pensador e professor, que ensina actualmente em Roma, aborda várias questões a propósito da exortação do Papa Francisco sobre a família, Amoris Laetitia.
Especialista em ética das virtudes, bioética e história das éticas teológicas, Keenan esteve em Junho em Lisboa, a convite da Pastoral da Família da Companhia de Jesus e da revista Brotéria.
Na entrevista, agora publicada a propósito do domingo em que a Igreja Católica assinala liturgicamente a festa da Sagrada Família, Keenan insiste em que a escuta é a palavra-chave neste momento para a pastoral da Igreja: mas manifesta a dúvida de que a maior parte dos padres esteja preparada para escutar, insistindo em que todo o clero – incluindo bispos – devem fazer essa experiência. “Quando alguém está a sofrer é tão doloroso não ser escutado”, diz.
Keenan refere-se ainda à contestação de que o Papa tem sido vítima e à diferença, nas questões da culpa e da consciência, entre as teologias do pós-II Guerra feitas nos EUA e na Europa.
7M/Ponto SJ – Na doutrina do matrimónio e da família, a exortação apostólica Amoris Laetia (AL) é um momento de ruptura ou de continuidade relativamente à tradição da Igreja?
James Keenan (J.K.) – Ao longo de todo o documento está patente a preocupação de demonstrar que está em continuidade. Uma das coisas mais importantes a esse respeito foi o facto de o filósofo italiano Rocco Buttiglione ter chamado a atenção para a circunstância de João Paulo II ter aberto a porta da comunhão a pessoas que, sendo recasadas, “vivessem como irmãs”. Buttiglione sublinha que, até esse momento, ninguém acreditava na possibilidade de alguém que se tivesse voltado a casar pudesse receber a comunhão.
Buttiglione ensina na Universidade Lateranense e no Instituto João Paulo II para o Matrimónio e está muito habilitado para defender que o ensino nesta matéria é contínuo. E o facto de o ponto mais controverso da AL estar relacionado com uma nota de rodapé, em que não se toma uma posição mas apenas se fala de uma possibilidade (e nem sequer de uma probabilidade) deixa claro o desejo de enfatizar a continuidade.
O resto do documento também foi pensado de modo a ser um instrumento pastoral. Por isso, há a preocupação de demonstrar que não se está a fazer uma rutura doutrinal, mas a responder a questões pastorais que não foram respondidas ao longo de décadas. A novidade está em assumir estas questões.
Mas, na Familiaris Consortio, o Papa João Paulo II foi claro quanto à impossibilidade de os recasados receberem comunhão e a nota de rodapé de Francisco abre essa porta…
J.K. – Buttiglione sublinha que, antes de João Paulo II, se afirmava que ninguém recasado poderia jamais receber a comunhão. João Paulo II abriu essa possibilidade, desde que [o casal] vivesse como se os dois fossem irmãos. O argumento de Buttiglione é que a porta não foi aberta por Francisco mas antes por João Paulo II, até certo ponto. E Buttiglione pergunta porque não podia Francisco abri-la um pouco mais…
Isto é muito importante para a tradição católica porque é assim que as coisas se vão processando. Sou professor de Ética e parte do meu trabalho é estar atento à História da Ética. Sempre que me deparo com a expressão “como sempre ensinámos” costumo dizer aos meus alunos: vão investigar, tentem perceber quando é que o ensinamento mudou, porque se se diz isso, é por alguma razão.
O ensino da Igreja está sempre em desenvolvimento, é a natureza da Tradição. Temos que levá-la para diante e, se não o fizermos, não sobreviverá. Por isso foi tão importante para mim ler Buttiglione e ver alguém com o seu posicionamento mostrar como funciona a tradição da Igreja.
Mas como podemos clarificar o modo como funciona a Tradição? Falou de continuidade e, para muitos, a Tradição nunca muda. Mas a verdade é que há mudanças…
J.K. – Sim. Um dos exemplos que se pode dar é o da passagem dos Actos dos Apóstolos no capítulo 15, o [designado] Concílio de Jerusalém que eu defendo ser o primeiro Sínodo da Igreja. O que se faz aí é responder a uma nova questão: é preciso ser circuncidado para se ser considerado cristão? O que acontece é isto: cada sociedade, cada geração coloca novas questões. A Tradição é algo que transportamos, mas temos de a transportar no tempo, movê-la para a frente. O único modo de o fazer é permitir que ela seja moldada por cada geração.
Tive um professor de Direito Canónico que dizia: “a Tradição precisa de ser distinguida da fé morta dos vivos e da fé viva dos mortos.” Isso pareceu-me muito inspirador porque a Tradição refere-se a uma fé viva que tem um caminho contínuo e tem de seguir o seu caminho de uma forma prudente para não levantar dificuldades. Por isso, a questão que se coloca é saber se o Papa está a ser prudente no modo como abre a porta, do mesmo modo que podemos perguntar se o Papa João Paulo II foi prudente ao abrir a porta num primeiro momento. Este é o ponto-chave.
E o que lhe parece?
J.K. – Penso que qualquer pessoa que leia o documento, que leia realmente o documento [sublinha de forma muito enfática] encontra outros oito capítulos e muitas outras notas de rodapé que falam apenas de acompanhar pessoas casadas. Ponto final parágrafo. Fim da questão. É disso que trata o documento.
É como um avô sentado na sala a dar conselhos sobre o modo de apoiar os casais e a ajudar o clero a compreender como acompanhar as famílias. Creio que muita gente não leu o documento e, quando o faz, fica surpreendida pelo modo como ele nos enche de vida.
Aconselho quem queira saber qual é o tema principal do documento a ler os capítulos dois e quatro. São capítulos sobre o que é a vida familiar, sobre o que é o casamento e como deve ser o acompanhamento da Igreja, sobre como é que um padre deverá estar disponível. Isto são coisas sobre as quais a maioria das pessoas que se senta nos bancos da Igreja gostaria de ouvir falar.
E também se fala sobre o acompanhamento por parte de leigos… Podemos falar de um bom acolhimento e de uma boa concretização da AL?
J.K. – Sim. Há vários exemplos. Na diocese de Rouen, em França, o bispo nomeou há [mais de] três anos sete “padres da misericórdia”. Os casais que desejem falar sobre a sua situação podem procurar estes padres. O bispo confia neles, no seu juízo prudencial, no seu acompanhamento e modo de proceder. Este é um exemplo.
Tenho falado com um bispo da Califórnia e ele refere-se a diferentes programas desenvolvidos nas suas paróquias. Passando por diferentes lugares para falar da AL vou percebendo que a linguagem do acompanhamento se vai tornando mais familiar. É uma palavra que os padres estão a usar nas paróquias.
Nas casas de retiros dos jesuítas agora diz-se “estou a acompanhar” alguém num retiro; antes dizia-se “estou a dirigir”. Nunca tinha ouvido isto antes. A linguagem do acompanhamento está a tornar-se normal e eu acho que este é um elemento chave. Poderia dar muitos outros exemplos no que toca a este acompanhamento.
Mas ainda há muito trabalho a fazer?
J.K. – Sim. Os padres precisam de ser preparados. Este é o principal problema. Porque muitos dizem “eu não sei como acompanhar”. Sou padre, tenho 66 anos e já ouvi muitas pessoas em confissão. Um bom confessor é alguém que acompanha. O confessor ouve as pessoas no confessionário, procura compreender o que dizem, fazer um bom julgamento, dar alguns conselhos pastorais, consolar. Tudo para ajudar o penitente a ir mais além da absolvição, experimentando a graça do sacramento.
Não vejo isso em muitos padres e ouço muitos a dizer que não sabem como acompanhar. E eu pergunto-lhes “porque é que és padre?” E ainda que sejam muito conservadores, eu digo-lhes: “Senta-te num confessionário e aprende. Esse é um ministério de acompanhamento.”
No meu contexto, a Igreja profissionalizou-se. As pessoas sabem como gerir uma paróquia, mas não sei se sabem estar pastoralmente presentes numa paróquia. O povo de Deus está desejoso de acompanhamento, mas eu não sei se os padres estão preparados para isso. Uma coisa é pregar onde, de certa maneira, se pode dizer o que se quiser. Outra coisa muito diferente é estar na situação humilde de ouvir um casal ou uma pessoa e trabalhar com essas pessoas, estar disponível para elas. Este é o ministério a que estamos chamados. Creio que é o ministério próprio do II Concílio do Vaticano, é o tipo de ministério que o Papa Francisco defende na AL. E isto é o que eu acho entusiasmante na exortação.
Deve a Igreja preparar mais pessoas, incluindo jovens e jovens casais para acompanhar outros casais jovens?
J.K. – Sim. A diocese de San Diego, na Califórnia, teve um sínodo e uma das coisas que ficou decidida foi ter um programa de acompanhamento para todos os casais, em especial para os que se preparam para o matrimónio. Há duas possibilidades: ou o casal escolhe um outro casal para o acompanhar ou a paróquia designa um para o mesmo efeito. Esta segunda possibilidade é mais formal, mas vincula o casal à paróquia como um todo. A escolha pessoal fica dentro da família e amigos em vez de alargar a pertença à paróquia.
Mas tudo depende da liderança do bispo. É o bispo fiel no que respeita ao ensinamento da AL? E o que posso verificar é que estamos a presenciar um lento, mas firme desenvolvimento desta atitude. As pessoas tomaram consciência de que estamos diante de uma nova forma de exercer o ministério.
Isso tem consequências na teologia, também?
J.K. – Isto também afeta os teólogos morais que já não escrevem uns para os outros, mas escrevem para todos aqueles que exercem algum ministério para que possam saber como o devem fazer. Sejam eles leigos, padres ou bispos. Por isso, a natureza eclesial do trabalho dos teólogos também mudou. Não se trata de preparar pronunciamentos teológicos, mas de acompanhar as pessoas no seu trabalho.
Isto é muito entusiasmante e não me parece que seja muito difícil de aprender. Creio que é uma questão de vontade e de humildade. Acredito que, quando começamos a aprender a ouvir, a olhar para nós próprios como alguém que tem de lidar com a sua consciência e que procura encontrar-se com outra pessoa que luta também com a sua consciência, experimentamos um apelo à abertura, à honestidade e à integridade. Isto é acompanhar.
Costumo usar como modelo de acompanhamento os Penitenciários Irlandeses. Quando este modelo começou as pessoas iam confessar-se a alguém a quem chamavam “um amigo da alma”. Alguém que, na vizinhança, se sabia que tinha sofrido e que era conhecido por ser um ouvinte humilde. Seria bom ter alguém com estas características nas nossas paróquias.
A escuta é a palavra-chave…
J.K. – A escuta é a palavra-chave, a escuta saudável… Quando alguém está a sofrer e quem ouve não escuta a luta da pessoa que sofre, é tão doloroso… Escutar é estar realmente atento à pessoa.
Uma coisa que aprendi há alguns anos e que ensino aos meus alunos é que, quando vão ao médico, as pessoas só dizem o que realmente as preocupa na terceira afirmação. Os médicos perguntam: “Como está?” E as pessoas respondem: “Não tenho dormido bem, ando irritado, tenho aqui uma mancha…” E de repente, quando chegam ao terceiro ponto é que tocam no que é importante.
O mesmo acontece na confissão. É quando chegam ao terceiro ponto que as pessoas tocam no que as incomoda: “Faltei à missa, menti duas vezes, estou envolvido num caso extraconjugal, zango-me com os meus filhos.”
E aí entra a escuta…
J.K. – A escuta é uma experiência de abertura à humanidade, é um modo de estar presente. Implica hábito, um hábito frequente. É aqui que está a chave. Implica entrar dentro da experiência sacerdotal para que os padres compreendam que a escuta vale a pena. Temos de ter bispos que façam esta experiência. Os padres, bispos e teólogos que o estão a fazer experimentam uma enorme satisfação. E os leigos envolvidos neste processo também sentem que este modo de ser Igreja é muito gratificante.
Isto mudará consideravelmente o modo de viver a vocação. Muitos jovens padres têm dúvidas quanto ao modo como a sua vocação será sustentada. Se for através deste modo de encontro honesto e relacional, será muito melhor para eles.
“Nos Estados Unidos nunca pedimos desculpa, nunca reconhecemos nada”
O lugar da consciência e a noção da culpa são encarados de forma muito mais profunda na Europa do que nos EUA, diz James Keenan. Tudo por causa do que aconteceu na II Guerra Mundial e do modo como os teólogos europeus aprofundaram esses temas.
7M/Ponto SJ – Há um ponto muito presente no pontificado de Francisco e também na Amoris Laetitia. No nº 37, lê-se: “Fomos chamados a formar consciências, não a substituí-las.” Isto enfatiza a importância do primado da consciência nas decisões morais. Este é um dos pontos-chave do pontificado de Francisco? E este primado da consciência traz riscos e desafios à Igreja?
J.K. – A consciência é usada de modos diferentes, nas diferentes culturas. Infelizmente na minha cultura, muitas pessoas, quando usam a consciência, é para dizer: “Lamento mas não concordo. Tenho de seguir a minha consciência.” A [encíclica] Humanae Vitae é um exemplo clássico. As pessoas dizem, em relação à encíclica: “Desculpe, tenho de seguir a minha consciência.” Eu digo: “Mas deve sempre seguir a sua consciência. Por que diz que lamenta…?”
Vale a pena recordar que antes da II Guerra Mundial, vários teólogos belgas, alemães e franceses escreveram sobre a consciência: estavam muito preocupados com o facto de o catolicismo ser um catolicismo de “soldados rasos”. As pessoas limitavam-se a cumprir ordens e a fazer as coisas de determinada maneira. Mas, no final da Guerra, estavam tão escandalizados com o que tinha acontecido, que a consciência se transformou num lugar importante, no lugar do reconhecimento da culpa. Na verdade, o início da consciência, a primeira experiência de consciência de uma pessoa, é a de uma consciência culpada.
É mesmo assim?
J.K. – Mesmo na história, qualquer pessoa que escrevesse sobre consciência – os romanos ou os gregos, por exemplo – falavam primeiro sobre a culpa. É interessante quando a pessoa se sente culpada por ter feito algo errado ou que deveria ter feito e não fez. Ninguém o disse, mas há uma voz dentro de si que faz a pessoa sentir-se culpada.
O despertar da consciência está geralmente ligado à culpa e, no século XX, a renovação da [reflexão sobre a] consciência veio da Europa e dos europeus. Os americanos não tinham qualquer interesse nesse tema. Se olharmos para algumas revistas teológicas não encontramos teólogos como Bernard Haring ou qualquer outro europeu. Em parte porque, com Eisenhower, Roosevelt e outros, os americanos apenas se limitaram a seguir os líderes: fizemos bem, a guerra acabou, acabámos com o mal. É assim que vemos as coisas.
Nos Estados Unidos, não temos experiência de reconhecer a culpa: não há nenhum monumento em sítio algum dedicado à escravatura. Não há nenhum monumento em nenhum lugar sobre a tentativa de erradicar os povos nativos. Não há nada sobre Hiroshima e Nagasaki. Nós nunca pedimos desculpa, nunca reconhecemos nada. Parte do ethos americano é que a linguagem da consciência é uma arma que eu uso para dizer que estou em desacordo.
É diferente do que se passa na Europa?
J.K. – Na Europa Ocidental, a apropriação da consciência aconteceu logo após o fim da Guerra e permaneceu. Nos seminários, as pessoas que mais tarde se tornariam bispos e cardeais estavam realmente convencidas da importância da consciência em todos os assuntos da vida. As outras igrejas de língua inglesa – seja na Inglaterra, Irlanda ou Austrália ou em qualquer outro lugar – têm uma posição semelhante à dos EUA. Falarão de consciência como “uma opção de saída”: “Lamento mas tenho de seguir a minha consciência…”
Os europeus que olham para a culpa e a complexidade da II Guerra Mundial reconhecem-na experimental, social e pessoalmente e percebem que a única coisa que os condenou realmente foi a sua consciência. Aprenderam, experimentalmente, uma voz moral. Por isso, uma das coisas que me preocupa é se compreendemos que a humildade é o contexto ou a base da consciência – essa é a chave. Onde há humildade, há possibilidade de desenvolvimento da consciência. Sem humildade, não há consciência.
Temos de ouvir os ditames da consciência. Há muito a fazer no ensino sobre consciência e o Papa fá-lo bem. Na festa de Pedro e Paulo [29 de Junho], o Papa disse que, quem pense que é melhor do que outro, está a começar mal. Se não se pensar com humildade, não estará a pensar em consciência.
Oposição ao Papa: o uso das redes sociais para o ego
“As redes sociais têm 14 anos e penso nelas como um adolescente que tem 14 anos”. E isso tem a ver com a oposição ao Papa Francisco. Keenan explica porquê.
7M/Ponto SJ – Não só em torno da Amoris Laetitia, mas também do Papa Francisco, há muitas tensões e conflitos. O que diz a história sobre a forma como lidar com os conflitos dentro da Igreja? Ou sobre o modo como se aprende a estar em desacordo ou em conflito com outras pessoas na Igreja?
J.K. – [Houve um encontro] em Setembro [de 2019], do Dicastério do Desenvolvimento Humano, presidido pelo cardeal Turkson, sobre as redes sociais e o bem comum. Foi muito oportuno. As redes sociais têm 14 anos e penso nelas como um adolescente que tem 14 anos. As redes sociais têm a ética de um adolescente de 14 anos e as pessoas que as usam agem como se tivessem14 anos.
Há algo sobre as redes sociais que ainda não percebemos, que pode ser um instrumento para o bem, mas até agora parece ser um instrumento para o ego. Eu uso o Facebook e as redes sociais, mas penso que ainda não entendemos o seu impacto: elas são uma nova realidade e animam o que acontece agora mesmo.
E o que têm o bem ou o ego a ver com a oposição ao Papa?
J.K. – Temos de dizer que há muito ego envolvido nessas guerras culturais que têm acontecido. Estou agora a viver em Roma. E há um homem, Steve Bannon, que tem tentado mobilizar forças para contradizer o Papa, através das redes sociais e da riqueza, e [que faz parte de um grupo de pessoas] que está a tentar polarizar a Igreja.
Há problemas reais de polarização hoje, mas que não são necessariamente baseados em argumentos teológicos. Não me parece que sejam como uma luta dos dominicanos com os franciscanos ou dos [cristãos] gregos disputando com os latinos por causa do Filioque [procedência do Espírito Santo]. Não são esses os debates que temos. Os piores conflitos têm a ver com o poder e não com a verdade.
“A família não é um lugar idealizado, é cheio de caos e amor, experiência e dúvida”
É preciso voltar à linguagem das virtudes, defende James Keenan, que considera que a Amoris Laetitia fala do casamento como sendo muito mais do que o controlo de natalidade.
7M/Ponto SJ – Na preparação do Sínodo sobre a família, soube-se que a maior parte das respostas enviadas dos países ocidentais dava conta da oposição à doutrina da Humanae Vitae sobre a contracepção. Mas no Sínodo e na Amoris Laetitia o tema quase não aparece…
J.K. – Concordo cem por cento. Eu trabalhei com Miguel Yanez, um moralista argentino. Somos amigos e colegas e, como agora estou em Roma, estava um dia a caminhar com ele e disse-lhe que a Amoris Laetitia assumiu a Humanae Vitae. E disse-o positivamente. Se olharmos para o casamento não apenas como controlo de natalidade, se convidarmos casais para examinarem as suas vidas não apenas sobre o prisma de saber se usam métodos de controlo de natalidade, mas sobre a imensidão de questões que ocorrem no casamento, então estamos a entender o que é a vida familiar no casamento.
E o que é a vida familiar?
J.K. – Na minha família, a minha tia e meu tio não tiveram filhos e adoptaram quatro crianças. Depois a minha tia morreu e, a seguir, morreu o meu tio. Na minha família, onde éramos cinco filhos, entraram outros quatro de repente. Para mim, era estranho. Falo sobre isto com outras pessoas e também com os meus primos, que estavam a viver isto e tinham sido adoptados. Eles passaram por três vidas familiares: a família não é o que vemos ou o que vimos na televisão quando estávamos a crescer. Não é um lugar idealizado, é um lugar cheio de caos e amor, experiência e dúvida…
O que é a família, quantos pais há na família, quantos pais solteiros estão lá fora agora, quantos filhos não estão na família? Estas formas de ver como os filhos são criados, como os casais tentaram ter filhos, todas estas questões… Não estamos à procura da resposta maioritária, estamos à procura das respostas básicas. E penso que é para aí que [o Papa] Francisco nos está a conduzir: encontrar as pessoas concretas e saber quais são as suas tensões.
Isso relaciona-se com um dos temas que tem investigado, a “teologia das virtudes”. Num artigo recente, escreveu que até ao século XVI tínhamos mais ênfase na teologia das virtudes e, depois disso, começou a acentuar-se o que se pode e não pode fazer. O que é preciso fazer para reassumir as virtudes morais na Igreja e nas vidas das pessoas?
J.K. – Se olhar apenas para o Catecismo e a ética sexual, a única virtude que se propõe é a castidade. A castidade está a ser proposta, mas há outras virtudes agora para moldar a vida familiar e a ética sexual: falamos mais de justiça, de fidelidade, de prudência e de cuidados pessoais. Estamos a prestar mais atenção à vulnerabilidade das pessoas…
A crise actual na Igreja é sobre crianças vulneráveis e adultos vulneráveis. Mas é também sobre o facto de que a vida sexual, como a vida familiar, é muito vulnerável. Está a desenvolver-se uma nova linguagem: o acompanhamento e o discernimento. Mas, na ética, usamos uma linguagem familiar que é a mesma que se utiliza quando se ensina uma criança a ser amigável, a respeitar e ser confiável. Essas são palavras básicas com muito significado.
A linguagem é importante?
J.K. – A linguagem é fundamental. Quando começamos a falar de um imperativo categórico, perdemos 99 por cento do povo de Deus. Quando falamos sobre o mal intrínseco, perdemos muitas pessoas também. Quando falamos de proporcionalismo, perdemos muitas pessoas. Mas quando falamos de respeito, honestidade, integridade, justiça, fidelidade, cuidado pessoal, prudência, misericórdia, penso que as pessoas dizem “sim, gosto disso”.
A linguagem da virtude é mais do que apenas algo familiar. É formativa e ajuda, dá uma direcção geral de para onde devemos ir. Gosto de trabalhar muito com prudência e a prudência é a virtude que mais me interessa, porque penso que a prudência é a virtude. E está em toda a Amoris Laetitia. O máximo que podemos pedir a um casal neste momento é prudência. Se começarmos a ajudar as pessoas a ver que a linguagem que elas usam é a linguagem que é realmente útil, seria bom.
Se pensarmos bem, a maioria dos pais usa a linguagem da virtude. Ocasionalmente, impõem uma regra: “não fiques na rua depois das cinco e meia”; mas com filhos mais velhos dizem: “não fiques na rua depois das dez e meia”. A regra adapta-se. Mas o que realmente os pais querem dizer é: “Sejam responsáveis, amigáveis, respeitadores, amáveis.” Essa é a linguagem dos pais com filhos para os formar. Eles desejam que seus filhos se tornem verdadeiros, genuínos, tudo o que sejam capazes de ser.
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