Dizem que todos os tombos são tolos, na medida em que poderiam ser evitados. O fato é que pensamos isto somente quando o desastre já aconteceu. Numa noite fria interrompi a sessão de cinema caseiro para buscar um café. Quando retornava, resvalei na escada e caí como um saco de batatas. Pancadas na cabeça, no tórax, no fêmur direito, no joelho esquerdo, ... O café? As xícaras voaram, uma das quais espatifou-se na parede. Pedi socorro à esposa. Enquanto avaliava o estrago, dei atenção ao que mais doía, bem como ao que mais impressionou minha esposa, um senhor “galo” na testa. A desatenção ao líquido que derramara no braço direito teria seu preço. Foi absorvido pela blusa que usava, gerando uma queimadura de segundo grau.
Todo o resto se foi ao cabo de duas semanas, mas o ferimento da queimadura ainda resiste, um mês após o acidente, e uma infecção secundária prolonga o padecimento, me obrigando ao uso de antibióticos. Pelo pouco que já passei, avalio agora o quanto sofrem vítimas de queimaduras, expondo tecidos saudavelmente reclusos à dor e à insidiosa contaminação. Enquanto isto, coisas importantes aconteceram. Sinto um certo constrangimento em escrever que acredito que vivemos tempos difíceis. O embaraço decorre do imaginar que esta afirmação encontrou abrigo em todas as épocas. Assim, distante da originalidade, ainda corro o risco de uma leitura irreal de nosso tempo. Sei lá, mas algo grita dentro de mim: estamos vivendo momentos preocupantes.
Ontem mesmo um grupo inspirado por maus espíritos incendiou igrejas no Chile. Certamente gritava contra o fascismo ... De pronto lembrei de episódio semelhante ocorrido na Escandinávia, onde grupos musicais de “black metal” oscilam entre posturas satânicas, nomes demoníacos, suicídios, ocultismo, morte e satanismo. Numa onda deflagrada por um cantor, muitas igrejas de madeira, históricas, foram queimadas. Isto na civilizadíssima Noruega. Dá o que pensar.
Se o ferimento provocado pelo tombo segue queimando, na assepsia com líquidos ardidos, há outras coisas na vida que igualmente queimam. A mais óbvia é a inveja, velha conhecida do homem. Outra, velha como Adão e sua descendência, é a vaidade, combustível dos melindres, dos mal entendidos, da hipersensibilidade. A rede social atuou como um amplificador desta queimadura, sobretudo porque opiniões são compartilhadas com muita gente e isto machuca ainda mais. Se uma conversa ao pé do ouvido é queimadura de primeiro grau, um embate acompanhado por uma tribo na rede mundial pode causar queimaduras de quarto grau.
Há um fogo diferente daquele que nos aquece. Há mesmo um cheiro de enxofre no ar. Uma inscrição numa das igrejas queimadas no Chile tem o DNA de um autógrafo: “Morte ao Nazareno”. Sabemos quem é o grande inimigo do Cristo, aquele que buscou sua submissão em troca de glórias terrenas. Mas como nem só de pão vive o homem, teve de recolher-se em seu covil, de onde jamais para de atormentar a humanidade, arregimentando desobedientes.
Num momento em que uma nova encíclica acaba de ser publicada, sob algumas críticas de que trai um certo indiferentismo religioso, na linha de uma religião que se afastaria de Cristo, recolho os remos porque estas são águas cuja carta náutica desconheço.
Convivi com pessoas que prenunciavam o fim dos tempos. Já morreram. Não viveram o Apocalipse de João, senão o apocalipse nosso de um dia qualquer. Em meio a divisões, a reações que atribuo, sem qualquer hesitação, ao príncipe das trevas, fico triste por alguns instantes, mas apenas por alguns instantes. O curativo vem Dele: “e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”. Nada há a temer, nem mesmo por sua Igreja, por mais que a apostasia geral tenha sido profetizada por João, em Patmos.
Quando o mar encapela, se enche de procelas, recorramos a um timoneiro dos sete mares: “A verdadeira ameaça para a Igreja e, portanto, para o ministério de São Pedro, consiste na ditadura mundial de ideologias aparentemente humanistas. Contradizê-las constitui uma exclusão do consenso social básico (…) A sociedade moderna está no processo de formular um ‘credo anticristão’. E quem resiste a ele é castigado com a excomunhão social. O medo desse poder espiritual do Anticristo é, portanto, muito natural, e são realmente necessárias as orações de toda a Igreja para resistir a ele”. Bento XVI, o Papa Emérito, em sua biografia revisada, dá mostras de que ainda precisamos muito dele. Pelo menos, claro, se o tempo anda mesmo difícil.
J. B. Teixeira |
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