Quase passou despercebida, entre discussões sobre o
Orçamento e o referendo da eutanásia, a aprovação na generalidade de uma
alteração da lei da procriação medicamente assistida que vem permitir a chamada
“inseminação post mortem”. Esta indiferença
contrasta notoriamente com o que se tem passado em França, onde este tipo de
questões bioéticas tem motivado, desde há vários anos, amplos debates que
envolvem a sociedade civil e até grandes manifestações de rua.
Esta alteração vem na sequência de outras, que têm
anulado aspetos mais restritivos da versão inicial dessa lei. Foi assim com a
admissibilidade de recurso à procriação medicamente assistida por parte de
mulheres solteiras ou em união homossexual, ou a abertura à chamada
“maternidade de substituição”.
Essas restrições, porém tinham, e têm, a sua razão de
ser.
O princípio de
que deve partir-se neste âmbito é o de que um filho não é um direito, mas um dom. Não deve ser reivindicado como objeto de um direito ou um
desejo. Não deve ser encarado nunca como objeto, mas sempre como sujeito. O bem
da criança a nascer deve prevalecer sobre qualquer desejo dos progenitores, por
muito digno de respeito ou compreensão que seja tal desejo. Ela deve ser tratada como um valor em si
mesma, não como instrumento.
É esse princípio que, basicamente, justifica esse tipo
de restrições. É ele que está em causa na discussão sobre a admissibilidade da
“inseminação post mortem.” Isso mesmo
é afirmado no parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciência da Vida
relativo aos projetos de lei agora aprovados. Esse parecer não retira dessa
afirmação a consequência lógica que daí decorreria, no sentido da oposição a
esses projetos (fá-lo claramente apenas o voto de vencido anexo), embora aponte
alertas e reservas.
O que está em causa, na “inseminação post mortem” é a deliberada e
intencional geração de uma criança órfã, privada de um pai. Por isso, impõe-se
considerar que o seu bem é sacrificado e subordinado ao desejo da mãe. Um pai
nunca é dispensável, por muito dedicadamente que a mãe
cumpra a sua missão
É verdade que esta situação já se verifica na
procriação medicamente assistida requerida por mulheres sós ou em união
homossexual, que a lei já hoje permite, ao contrário do que se verificava na
sua versão inicial. Mas é essa alteração que deve ser, antes de mais, condenada
(tanto mais que supõe o recurso a um dador anónimo, e não ao material genético
de uma pessoa determinada, cônjuge ou companheiro da mãe falecidos). É essa
alteração, a possibilidade de geração intencional de filhos órfão de pais, que
tem motivado uma viva oposição à proposta legislativa francesa, traduzida até
em manifestações de rua. Entre nós, pelo contrário, prevaleceu a indiferença
quando essa alteração foi aprovada, em 2016.
É compreensível, e digno de respeito e compaixão, o
desejo de uma mãe perpetuar no filho de um marido falecido a memória deste. Mas
essa compreensão não pode levar a ofuscar uma verdade indesmentível: o filho
deve ser encarado como bem em si mesmo, não como meio de perpetuar a memória de
outra pessoa, não pode ser instrumento de um desejo, nem mesmo de um desejo tão
digno de respeito e compaixão como esse. E um filho gerado nessas condições não
deixará de ser, desde o início da sua vida, órfão de pai.
São estes os valores que estão em jogo nesta tão
ignorada e apressada discussão de política legislativa. Justificariam que, pelo
menos, essa discussão não fosse tão ignorada e apressada.
Pedro Vaz Patto
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