Para
quem, como eu, lida quotidianamente com a justiça criminal, o tema da relação
entre a justiça e o perdão assume uma grande relevância. Tenho refletido e
escrito sobre ele à luz do Evangelho e da doutrina social da Igreja. Um bom
contributo para essa reflexão nos chega agora através da encíclica Fratelli tutti.
Muitas
vezes tenho citado, a este respeito, uma notável mensagem de São João Paulo II,
a sua mensagem para Dia Mundial da Paz de 1 de janeiro de 2002 Não há Paz sem
Justiça, não há Justiça sem Perdão.
Nela se afirma:
«Muitas
vezes me detive a reflectir nesta questão: qual é o caminho que leva ao
pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada. A
convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é
que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente
justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma
particular de amor que é o perdão. (...) Por isso, a verdadeira paz é fruto
da justiça, virtude moral e garantia legal que vale sobre o pleno respeito de
direitos e deveres e a equitativa distribuição de benefícios e encargos. Mas,
como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às
limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa
maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em
profundidade as relações humanas transformadas. Isto vale para as tensões
entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais alargado e
mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque
não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada,
mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da
ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das
hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram
nos corações. Para tal, justiça e perdão são essenciais (n. 2-3)».
Por
outro lado, o perdão não tem uma dimensão puramente individual, moral ou
religiosa, tem também uma dimensão social: «Como ato humano, o perdão é, antes
de mais, uma iniciativa individual do sujeito na sua relação com os seus
semelhantes. Porém, a pessoa tem uma dimensão social essencial, que lhe permite
estabelecer uma rede de relações com a qual se exprime a si mesma: infelizmente
não só para o bem, mas também para o mal. Consequentemente, o perdão torna-se necessário
também a nível social. As famílias, os grupos, os Estados, a própria comunidade
internacional, necessitam de abrir-se ao perdão para restaurar os laços
interrompidos, superar situações estéreis de mútua condenação, vencer a
tentação de excluir os outros, negando-lhes possibilidade de apelo. A
capacidade de perdão está na base de cada projeto de uma sociedade mais justa e
solidária.» (n.9).
O
que nos diz agora, a este respeito, a Fratelli
tutti?
Diz-nos
que «a verdade, a misericórdia e justiça são essenciais para construir a paz e
cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas (n. 227).
Há que evitar quer o fatalismo e a inércia perante a
injustiça, quer a violência e a intolerância (n. 237)
Quando
Jesus afirma que não veio «trazer a paz, mas a espada» (Mt 10. 34-36), não
convida a provocar conflitos, mas a suportar o conflito inevitável, para que o
respeito humano não leve a faltar à fidelidade em nome duma suposta paz
familiar ou social (n. 240). A verdadeira reconciliação não escapa do conflito,
mas alcança-se dentro do conflito, superando-o através do diálogo e de
negociações transparentes, sinceras e pacientes (n. 244). Repetindo a máxima
que com frequência evoca, o Papa Francisco afirma que «a unidade é superior ao
conflito», o que não significa ignorar o conflito, mas resolvê-lo «num plano
superior que preserva as preciosas potencialidades das polaridades em
contraste» (n. 245).
Amar a todos significa amar também o opressor, mas tal
não significa consentir que este continue a oprimir ou levá-lo a pensar que é
aceitável o que faz; amar corretamente é procurar que ele deixe de oprimir,
tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano; a
justiça é guardar a dignidade da vítima, uma dignidade que lhe foi dada por
Deus; o perdão não anula as necessidades da justiça, reclama-as (n. 241).
Por isso, o perdão não conduz à impunidade: «a justiça
procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das
vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a
suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite
buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem da injustiça do
esquecimento» (n. 252). A esta luz deve ser encarado o que depois se afirma a
propósito da pena de morte e da pena de prisão perpétua (uma «pena de morte
escondida» - assim é qualificada esta pena).
De resto, a
vingança «nunca sacia verdadeiramente a insatisfação da vítima» (n. 251).
O
perdão não é algo que possa ser imposto às vítimas. Na esfera pessoal, alguém
pode renunciar a exigir um castigo, mesmo que a sociedade e a justiça o busquem
legitimamente. Mas ninguém pode arrogar-se o direito de perdoar em nome dos
outros. «É comovente ver a capacidade de perdão de algumas pessoas que souberam
ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não o
podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento» (n.
246).
Mas o perdão é sempre possível. «Mesmo que haja algo que
jamais pode ser tolerado, justificado ou desculpado, todavia podemos perdoar»
(n. 250). E, se o perdão é gratuito, «então, pode-se perdoar até a quem resiste
ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão» (n. 250).
De todas estas ideias, o que deve colher quem lida com a
justiça criminal?
Que o perdão não anula as exigências da justiça, mas vai para
além delas e permite alcançar uma mais plena harmonia social. Que há que
distinguir, sem separar completamente, a dimensão pessoal e a dimensão social
do perdão. Por isso, o perdão não pode ser imposto à vítima, mas o sistema
judicial deve deixar espaço para ele (através da justiça restaurativa, por
exemplo). A dimensão social do perdão traduz-se na reconciliação entre o agente
do crime e a sociedade (para além da vítima). Também essa reconciliação não
pode ser imposta ao agente do crime, mas deve ser proposta e promovida (através
de penas com um alcance socialmente positivo, como a de trabalho a favor da
comunidade, que não se confunde com “trabalho forçado”).
A fraternidade passa por este caminho de justiça, perdão
e reconciliação. Quem conhece de perto a realidade da criminalidade sabe que o
caminho a percorrer é longo, não cede a ilusões e utopias,
mas também não pode ceder ao conformismo e ao desânimo.
Pedro Vaz Patto
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