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domingo, 9 de setembro de 2018

Escravatura ontem e hoje

De há uns tempos para cá, e a propósito da polémica ligada à criação de um museu dedicado à expansão marítima portuguesa, vimos assistindo a reflexões e debates sobre o fenómeno histórico da escravatura e o papel nele desempenhado pelos portugueses, como uma mancha que ensombra a nossa história.
Também se tem salientado, nesses debates, que a escravatura é um fenómeno que acompanha a história da humanidade desde sempre, presente no Egito, na Babilónia, na Grécia, em Roma, na China, no Médio Oriente islâmico, na América pré-colombiana, em África. Muitos dos escravos deslocados pelos portugueses e europeus para as Américas já o eram nas suas sociedades africanas de origem; discutem-se os maiores ou menores malefícios de uma e outra dessas formas de escravatura.
Diante da omnipresença histórica da escravatura, importa analisar como surgiu a ideia de a abolir, que hoje parece indiscutível, mas noutras épocas foi impensável (era-o para Aristóteles, por exemplo) ou tida por utópica. Não podemos deixar de considerar o papel histórico do cristianismo na génese dessa ideia. Por isso, e apesar de todas as incoerências dos povos que se afirmavam cristãos, como os portugueses, a difusão do cristianismo veio a contribuir, nem sempre de forma direta, mas providencialmente, para que essa ideia viesse a nascer e a consolidar-se.
As primeiras páginas da Bíblia descrevem a criação do ser humano, homem e mulher, «à imagem e semelhança de Deus». O Filho de Deus, Jesus Cristo, dá a sua vida pela salvação de toda a pessoa humana, chamada a participar na vida do Deus uno e trino. Maior exaltação da dignidade da pessoa humana, de toda a pessoa humana, é difícil de conceber. São Paulo dirá: «Não há judeu, nem grego, escravo ou homem livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um em Jesus Cristo» (Gal., 3, 26-28).
É certo que nem São Paulo, nem os primeiros cristãos, nem a Igreja durante muito tempo, retiraram de imediato da mensagem evangélica todas as consequências dela decorrentes no plano jurídico e político no que a esta questão (como a outras, de resto) diz respeito. Mas nessa mensagem estava contida uma semente que, progressiva e arduamente, viria a dar os seus frutos.
Esse trabalho progressivo começou na Antiguidade romana, onde a escravatura quase veio a desaparecer. Mas esta ressurgiu na era moderna, precisamente na época da expansão marítima europeia, e contra esse ressurgimento não tiveram efeito várias bulas papais (de Eugénio IV, Paulo III e Urbano VIII) que cominavam com a excomunhão quem a ela recorresse. Sem que tivessem ainda pugnado pela sua abolição completa, mas combatendo com vigor e coragem os seus aspetos mais desumanos, há que destacar a ação de missionários como Bartolomeu de las Casas e António Viera, entre muitos outros.
E foi a fé cristã que moveu a ação decisiva de figuras como Thomas Clarkson e William Wilbeforce (retratados no famoso filme Amazing grace) no movimento abolicionista inglês que, contra poderosos interesses, veio a influenciar o mundo ocidental de então e a conduzir gradualmente à abolição da escravatura nessa área.
Em 20 de julho passado, foi apresentado nas Nações Unidas, pela fundação australiana Walk Free, um relatório sobre a escravatura no mundo hoje: Global Slavery Index 2018. De acordo com esse relatório, há hoje cerca de 40 milhões de escravos em todo o mundo. A escravatura continua, pois, ainda hoje, a acompanhar a história da humanidade. Muitas dessas situações enquadram-se no âmbito do tráfico de pessoas, que em diferentes graus se aproxima da escravatura e representa sempre alguma forma de coisificação da pessoa.
São situações legalmente puníveis com severidade. Mas não podemos ignorar outras situações que também representam formas de coisificação da pessoa, que muitos desistiram de combater por consideraram que esse combate é utópico e bastará reduzir os danos (como sucedeu com a escravatura durante muito tempo) e que, por isso, deverão obter cobertura legal. Veja-se o que sucede, por exemplo, com a generalizada liberalização do aborto, ou com a proposta de legalização da prostituição. Sinais de regressão, e não de progresso… 
                                                                                                                               Pedro Vaz Patto




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