De
há uns tempos para cá, e a propósito da polémica ligada à criação de um museu
dedicado à expansão marítima portuguesa, vimos assistindo a reflexões e debates
sobre o fenómeno histórico da escravatura e o papel nele desempenhado pelos
portugueses, como uma mancha que ensombra a nossa história.
Também
se tem salientado, nesses debates, que a escravatura é um fenómeno que
acompanha a história da humanidade desde sempre, presente no Egito, na
Babilónia, na Grécia, em Roma, na China, no Médio Oriente islâmico, na América
pré-colombiana, em África. Muitos dos escravos deslocados pelos portugueses e
europeus para as Américas já o eram nas suas sociedades africanas de origem;
discutem-se os maiores ou menores malefícios de uma e outra dessas formas de
escravatura.
Diante
da omnipresença histórica da escravatura, importa analisar como surgiu a ideia
de a abolir, que hoje parece indiscutível, mas noutras épocas foi impensável
(era-o para Aristóteles, por exemplo) ou tida por utópica. Não podemos deixar
de considerar o papel histórico do cristianismo na génese dessa ideia. Por
isso, e apesar de todas as incoerências dos povos que se afirmavam cristãos,
como os portugueses, a difusão do cristianismo veio a contribuir, nem sempre de
forma direta, mas providencialmente, para que essa ideia viesse a nascer e a
consolidar-se.
As
primeiras páginas da Bíblia descrevem a criação do ser humano, homem e mulher,
«à imagem e semelhança de Deus». O
Filho de Deus, Jesus Cristo, dá a sua vida pela salvação de toda a pessoa
humana, chamada a participar na vida do Deus uno e trino. Maior exaltação da
dignidade da pessoa humana, de toda a pessoa humana, é difícil de conceber. São
Paulo dirá: «Não há judeu, nem grego,
escravo ou homem livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um em Jesus Cristo»
(Gal., 3, 26-28).
É
certo que nem São Paulo, nem os primeiros cristãos, nem a Igreja durante muito
tempo, retiraram de imediato da mensagem evangélica todas as consequências dela
decorrentes no plano jurídico e político no que a esta questão (como a outras,
de resto) diz respeito. Mas nessa mensagem estava contida uma semente que,
progressiva e arduamente, viria a dar os seus frutos.
Esse
trabalho progressivo começou na Antiguidade romana, onde a escravatura quase
veio a desaparecer. Mas esta ressurgiu na era moderna, precisamente na época da
expansão marítima europeia, e contra esse ressurgimento não tiveram efeito
várias bulas papais (de Eugénio IV, Paulo III e Urbano VIII) que cominavam com
a excomunhão quem a ela recorresse. Sem que tivessem ainda pugnado pela sua
abolição completa, mas combatendo com vigor e coragem os seus aspetos mais
desumanos, há que destacar a ação de missionários como Bartolomeu de las Casas
e António Viera, entre muitos outros.
E
foi a fé cristã que moveu a ação decisiva de figuras como Thomas Clarkson e
William Wilbeforce (retratados no famoso filme Amazing grace) no movimento abolicionista inglês que, contra poderosos
interesses, veio a influenciar o mundo ocidental de então e a conduzir gradualmente
à abolição da escravatura nessa área.
Em
20 de julho passado, foi apresentado nas Nações Unidas, pela fundação
australiana Walk Free, um relatório
sobre a escravatura no mundo hoje: Global
Slavery Index 2018. De acordo com esse relatório, há hoje cerca de 40
milhões de escravos em todo o mundo. A escravatura continua, pois, ainda hoje,
a acompanhar a história da humanidade. Muitas dessas situações enquadram-se no
âmbito do tráfico de pessoas, que em diferentes graus se aproxima da
escravatura e representa sempre alguma forma de coisificação da pessoa.
São situações legalmente puníveis com severidade. Mas
não podemos ignorar outras situações que também
representam formas de coisificação da
pessoa, que muitos desistiram de combater por consideraram que esse combate é
utópico e bastará reduzir os danos (como sucedeu com a escravatura durante
muito tempo) e que, por isso, deverão obter cobertura legal. Veja-se o que
sucede, por exemplo, com a generalizada liberalização do aborto, ou com a
proposta de legalização da prostituição. Sinais de regressão, e não de
progresso…
Pedro
Vaz Patto
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