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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

O espelho não se deixa enganar

Havia alguns anos que não o via. Coisas da vida, que distanciam conhecidos mas não  afastam amigos. Cada um de nós já teve a boa experiência de rever amigos e de perceber que o tempo foi incapaz de arranhar o bem querer. José, que revi num evento de negócios em São Paulo, mudou pouco e preservou uma virtude bem cristã: a alegria. No meio daquela semana jantamos juntos e naturalmente não desperdiçamos a chance de colocar os assuntos em dia.

José tem boa cultura e tiradas bem humoradas. Além disto respeita seus miolos e sustenta uma conversa adulta, o que é cada vez mais raro nos dias de hoje, em que sobejam conversas sem pé nem cabeça, seja sobre filhos, façanhas, viagens ou futebol. Em que predominam assuntos que vêm a calhar para o mais puro exibicionismo, este esporte deletério em que desfilamos mediocridades, arruinando nossas almas nem sempre reticentes aos cuidados egocêntricos.

Dei boas risadas com José, a relembrar episódios nossos ou de amigos comuns, sobretudo algumas de nossas grandes mancadas, que traíram indelicadezas impensáveis ou mesmo desnudaram nossos preconceitos apenas mascarados pela polidez. Um dos fatos ressuscitados foi uma partida de futebol entre as seleções brasileira e argentina, em solo portenho, que assistimos no apartamento da família de José em Porto Alegre. Seu pai ocupava alto posto público e pelo que me lembro jamais abria mão das formalidades. Além de mim havia outro intruso, a quem coube a nota infeliz. Numa disputa de bola um argentino a tomou de nosso centromédio. Foi o bastante para que o colega revelasse sua indignação: “Bah, perdeu para um careca!”. Besteira dita, nos entreolhamos aturdidos: o pai de José não tinha um fio de cabelo no cocuruto. Fleumaticamente fez-se de rogado e não acusou o golpe.

Também recordamos alguns porres inocentes, coisa de quem está a mensurar sua capacidade enquanto luta para virar adulto. Num deles José nos antecedeu em muito. Antes mesmo de os pratos serem servidos ele já estava prá lá de Bagdá. Em meia hora dormia apoiado na mesa. Não perdoamos. Colocamos um pouco de maionese em sua testa e assentamos pequenas bandeirolas feitas com palitos e guardanapos. Não havia máquinas digitais e o registro foi o de nossas retinas, certamente já um tanto nubladas pelo álcool.

Também trocamos opiniões sobre nosso país e as coisas do mundo. Disse a ele que vejo este momento como de transição e que a inquietude que assola alguns países muçulmanos também eclodirá na Europa, desviada de suas raízes cristãs, que lhe davam rumo e sentido. Avassalados pela competição e busca incessante de sensações e do progresso material, creio que os jovens do velho continente estão prestes a perceber que não é tão agradável viver, trabalhar e se portar como robôs. Arrastados por chavões que lhes foram instilados, como frases feitas de um discurso que lemos mecanicamente, como se nosso fosse, sem nossa concordância e muito menos cumplicidade. Mas ainda assim lemos, porque o senso comum assim o sugere ou impõe.

José não se mostrou interessado no tema e até me olhou  como se houvesse acabado de dizer algumas asneiras. Lembrei-me então da atmosfera de nossa juventude, manietada pela cartilha e os moldes da ditadura. Pervaguei a memória e um a um perfilei nossos tantos amigos comuns que se tornaram pessoas respeitáveis. Mas não fizeram a diferença, sobretudo por não terem arrostado o desafio de pensar com a própria cabeça, de arriscar opiniões e bosquejar horizontes que ninguém mais viu.

Nossa geração fez a transição de um país com baixa autoestima que ainda tinha as rédeas na mão para um híbrido de especioso desenvolvimento em que se foi o boi com a corda. Nossa geração de cinquentões foi covarde na denúncia dos erros que se acumularam em todos os quadrantes. E ora põe a cereja no bolo, alienada, pródiga em tentar ludibriar o tempo, portando-se como se sua idade houvesse congelado. Carros, viagens e hábitos de jovens. Roupa, cabelo e linguagem que não lhe caem muito bem.

No artigo “Em busca de Limite” na Folha de São Paulo a psicóloga Rosely Sayão escreveu: “O que temos feito para que os jovens amem a vida, tenham respeito por si mesmos e construam um futuro? De jovens, bastam eles. A juventude exaure, sabia leitor? Talvez nossos jovens precisem da companhia de pessoas mais velhas, dos adultos, por exemplo. Onde estão eles? Curtindo sua própria juventude já ida ...”. A quem pensamos enganar?

J. B. Teixeira





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