É
a vida ... É expressão que se usa com aquele ar de mulheres antigas, vestidas
de preto sem luto, sob um sol generoso, a lamuriar pelos incómodos nas juntas,
ou nos quartos, a murmurar contra as dores do mundo, a muxoxar contra a falta
de sentido da vida que resta. Assim postara-se uma das amigas de longa data ao
lado do esquife. É a vida ...
A
menos de um quilómetro dali, o rio que corta a cidade mantinha a romaria das
águas, que correm para a liberdade da Laguna dos Patos, águas nas quais os
desportistas, no início do século passado, mergulhavam seus remos. Havia de
tudo. Guarnições com e sem timoneiro e
mesmo os instáveis esquifes.
Naquela
câmara ardente o esquife não tem remos e a água da vida parou. No entorno
conjugam-se lamentos, que a solidariedade demonstra em forma de pesar. Sem
lágrimas, ainda, porque o adeus dispõe de algumas horas. No lado de fora os
assuntos são os mais ecléticos. É vida que segue. Futebol, política, um dito
jocoso e até mesmo algumas piadas. É a vida! Lá dentro conversas abafadas,
sussurros e uma certa compunção no ar. É a vida ... Na peça contígua,
salgadinhos, bolachas e café para enfrentar a madrugada. Como me dizia o sábio
Geir, empreiteiro de pequenas obras, filho de Irajuba, no sertão baiano, em sua
singeleza: “Pra quem vai, torrão. Pra
quem fica, pirão!”. É a vida.
Uma
das netas, disposta a quebrar todos os recordes de imaturidade, ao tocar a avó
de pronto reagiu: “Nossa, como está
gelada! Gente, vamos ligar o ar ...”. Uns e outros, já poucos na madrugada
alta, entreolharam-se, à procura de um rabo de tatu para uma pedagógica
correção. Lá fora Valdemar, exalando algum destilado barato, dava os pêsames
aos que o reconheciam.
O
luto é livre mas, afinal, o que pretende Valdemar a esta altura? Um faz tudo em
vida, ainda que tudo de qualquer jeito, Valdemar bajulava era um doutor, ao
mesmo tempo descrevendo o duro mister do dia seguinte. É um dos coveiros do
cemitério municipal. Com a língua lubrificada pelo alto grau GayLussac do que
ingerira, sem maldade ou penúria, Valdemar manifestou que em poucas horas faria
o seu serviço, com muito gosto. Num tempo em que as funerárias vendem pacotes
de despedida, convenhamos que um compungido coveiro a pedir gorjeta não chega a
ser algo chocante. Só falta ajustar um pouco o marketing, palavra que parece
inventada há pouco, mas tem a idade do homem.
No
início da madrugada restavam três. Não podiam bater em retirada, a menos que
fizessem uso da nova prática de passar a chave no recinto e abandonar o
falecido por algumas horas. Então chegou o reforço. Uma das filhas, com o
marido e um casal de filhos, estacionou o carro depois de longas horas de
viagem. Com o olhar desatento da dor, mal divisou os que ali estavam.
Aproximou-se da mãe, elogiou sua beleza, testemunhou a serenidade da morte e
comoveu quem a observava ao dizer, entre lágrimas calmas e quentes, que aquele
era o primeiro retorno triste dentre os tantos até então. É a vida ...
Teve
o dom de romper a mesmice que se arrastava à espera do trabalho de Valdemar e
sua trupe. Convocou então os presentes a rezarem uma Ave Maria, marcando
aquelas três e meia da manhã, finalmente, com ares de um ritual de caridade, de
tocante despedida, na busca da concreta consolação da Mãe de Deus, aquela que
perdeu o próprio Filho. Preencheu-se o vazio espiritual que dominava até aquele
instante. O mesmo vazio deixado no palco por um dos atores que o abandona, sem
aviso prévio, porque sua máquina pifou. É a vida.
Decorridos
alguns outros minutos, a neta recém chegada, a pretexto de apanhar um casaco no
carro, deixara o recinto em lágrimas. Para encontrar na calçada, na luz
minguante da indiferente lua, um rapaz que de vez em quando revê e que nem ela
sabe se é apenas um namorado ou nem isto. No cair da tarde daquele mesmo dia o
crepúsculo anunciaria que um dos combatentes de fato partira. Desconsolo para
os que não regaram o grão de mostarda, instantes de elevada significação para
os que acreditam que aquele ente querido apenas dorme. É a vida ...
J. B. Teixeira |
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