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terça-feira, 25 de setembro de 2018

Pra quem vai...

É a vida ... É expressão que se usa com aquele ar de mulheres antigas, vestidas de preto sem luto, sob um sol generoso, a lamuriar pelos incómodos nas juntas, ou nos quartos, a murmurar contra as dores do mundo, a muxoxar contra a falta de sentido da vida que resta. Assim postara-se uma das amigas de longa data ao lado do esquife. É a vida ...

A menos de um quilómetro dali, o rio que corta a cidade mantinha a romaria das águas, que correm para a liberdade da Laguna dos Patos, águas nas quais os desportistas, no início do século passado, mergulhavam seus remos. Havia de tudo. Guarnições com e sem timoneiro  e mesmo os instáveis esquifes.

Naquela câmara ardente o esquife não tem remos e a água da vida parou. No entorno conjugam-se lamentos, que a solidariedade demonstra em forma de pesar. Sem lágrimas, ainda, porque o adeus dispõe de algumas horas. No lado de fora os assuntos são os mais ecléticos. É vida que segue. Futebol, política, um dito jocoso e até mesmo algumas piadas. É a vida! Lá dentro conversas abafadas, sussurros e uma certa compunção no ar. É a vida ... Na peça contígua, salgadinhos, bolachas e café para enfrentar a madrugada. Como me dizia o sábio Geir, empreiteiro de pequenas obras, filho de Irajuba, no sertão baiano, em sua singeleza: “Pra quem vai, torrão. Pra quem fica, pirão!”. É a vida.

Uma das netas, disposta a quebrar todos os recordes de imaturidade, ao tocar a avó de pronto reagiu: “Nossa, como está gelada! Gente, vamos ligar o ar ...”. Uns e outros, já poucos na madrugada alta, entreolharam-se, à procura de um rabo de tatu para uma pedagógica correção. Lá fora Valdemar, exalando algum destilado barato, dava os pêsames aos que o reconheciam.

O luto é livre mas, afinal, o que pretende Valdemar a esta altura? Um faz tudo em vida, ainda que tudo de qualquer jeito, Valdemar bajulava era um doutor, ao mesmo tempo descrevendo o duro mister do dia seguinte. É um dos coveiros do cemitério municipal. Com a língua lubrificada pelo alto grau GayLussac do que ingerira, sem maldade ou penúria, Valdemar manifestou que em poucas horas faria o seu serviço, com muito gosto. Num tempo em que as funerárias vendem pacotes de despedida, convenhamos que um compungido coveiro a pedir gorjeta não chega a ser algo chocante. Só falta ajustar um pouco o marketing, palavra que parece inventada há pouco, mas tem a idade do homem.

No início da madrugada restavam três. Não podiam bater em retirada, a menos que fizessem uso da nova prática de passar a chave no recinto e abandonar o falecido por algumas horas. Então chegou o reforço. Uma das filhas, com o marido e um casal de filhos, estacionou o carro depois de longas horas de viagem. Com o olhar desatento da dor, mal divisou os que ali estavam. Aproximou-se da mãe, elogiou sua beleza, testemunhou a serenidade da morte e comoveu quem a observava ao dizer, entre lágrimas calmas e quentes, que aquele era o primeiro retorno triste dentre os tantos até então. É a vida ...

Teve o dom de romper a mesmice que se arrastava à espera do trabalho de Valdemar e sua trupe. Convocou então os presentes a rezarem uma Ave Maria, marcando aquelas três e meia da manhã, finalmente, com ares de um ritual de caridade, de tocante despedida, na busca da concreta consolação da Mãe de Deus, aquela que perdeu o próprio Filho. Preencheu-se o vazio espiritual que dominava até aquele instante. O mesmo vazio deixado no palco por um dos atores que o abandona, sem aviso prévio, porque sua máquina pifou. É a vida.

Decorridos alguns outros minutos, a neta recém chegada, a pretexto de apanhar um casaco no carro, deixara o recinto em lágrimas. Para encontrar na calçada, na luz minguante da indiferente lua, um rapaz que de vez em quando revê e que nem ela sabe se é apenas um namorado ou nem isto. No cair da tarde daquele mesmo dia o crepúsculo anunciaria que um dos combatentes de fato partira. Desconsolo para os que não regaram o grão de mostarda, instantes de elevada significação para os que acreditam que aquele ente querido apenas dorme. É a vida ...

J. B. Teixeira



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