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domingo, 30 de setembro de 2018

Um voto para uma casa, uma Casa para a Bíblia


sábado, 29 de setembro de 2018


Texto de António Marujo


© Ilda David, ilustração na Bíblia Ilustrada

Um voto pode decidir uma casa. E uma casa pode conter a Bíblia, a vida de uma comunidade local, a promoção da cultura e preocupações ambientais. Até este domingo, 30 de Setembro, estará em votação, no âmbito do Orçamento Participativo de Portugal, o projecto da Casa João Ferreira de Almeida, a construir em Torre de Tavares (Mangualde), que pretende “estudar, promover e divulgar a vida e obra” do autor da primeira tradução integral da Bíblia para português. O método é muito simples e basta usar uma mensagem de texto no telemóvel ou um computador com acesso à internet (no final, explica-se como se vota neste projecto). 

A ideia da Casa Ferreira de Almeida não pretende ser apenas a de um museu voltado para o passado. Entre os objectivos, estão os da apresentação da história da tradução da Bíblia para português e da biografia e trabalho de João Ferreira de Almeida, “salientando a sua importância como instrumento de promoção da língua e das culturas lusófonas”. 

“Promover a Bíblia como património espiritual e cultural” e de “valores universais”, bem como a criação de uma plataforma “para o conhecimento plural e acessível” do texto bíblico e dos seus significados, é outra das ideias. Tal como a de “resgatar da clandestinidade histórica e cultural a biografia e a bibliografia de João Ferreira de Almeida”, que pode ser considerado “um dos pais da lusofonia”, como dizem os promotores da ideia. 

O autor daquela que continua a ser a tradução mais vendida da Bíblia em português – pelo menos três a quatro milhões de exemplares, anualmente, só no Brasil – nasceu em 1628, em Chãs de Tavares, tendo ficado órfão desde muito cedo. Terá sido educado por um tio, padre católico, que residia em Lisboa. Aos 13 ou 14 anos, João parte para Amesterdão e, pouco depois, para Malaca. 

Durante a viagem, o jovem sobrinho de clérigo católico decide tornar-se protestante. Em 1644, com apenas 16 anos, João Ferreira Annes d’Almeida inicia a tradução dos textos da Bíblia do latim para português, começando pelo Novo Testamento. No trabalho, Ferreira d’Almeida coteja a sua versão com traduções para espanhol, francês e italiano. 

Reduzir a pegada de carbono

Não se ficarão pela Bíblia e pela memória de Ferreira d’Almeida os objectivos da Casa. Ela quer também afirmar-se como um “espaço expositivo de excelência” e um “centro vivo de referência cultural”, contribuindo, ao mesmo tempo, para “a formação da população local e dos visitantes”. “Não estamos a falar de uma realidade urbana, mas há uma preocupação forte com a comunidade local”, diz ao RELIGIONLINE Timóteo Cavaco, presidente da Sociedade Bíblica Portuguesa e um dos dinamizadores do projecto da Casa Ferreira de Almeida.
Outra preocupação será a da integração dos espaços, das opções por soluções energéticas seguras e não poluentes, de modo a reduzir a pegada de carbono, e com boas acessibilidades para pessoas com diferentes condições físicas, sensoriais e motoras. “Focada em destacar a relação entre a Palavra Criadora (Bíblia) e a Criação, a Casa está comprometida em promover o uso sustentável do ecossistema local”, lê-se na descrição do projecto. “Com efeito, tanto as áreas naturais, a descoberto, como a estética arquitectónica dos espaços interiores devem ser pensados em articulação com as características da paisagem” e com a preocupação da “conservação e sustentabilidade dos recursos envolvidos
(Ilustração acima: © Ilda David, Bíblia Ilustrada)



A Casa-Museu prevê vários departamentos: o Núcleo de Diálogo com a Bíblia pretende recolher, estudar e divulgar documentação e informação sobre o texto bíblico e sobre a influência deste na cultura das civilizações e na tradução para a língua portuguesa; o Instituto de Tradução e Literatura Bíblica será dedicado a investigadores e outros interessados, que trabalhem temas relacionados com o texto, transmissão e tradução da Bíblia; o Arquivo Português da Parenética Protestante destina-se a “coligir, preservar e estudar fundos documentais de pregadores das comunidades protestantes estabelecidas em Portugal a partir do segundo quartel do século XIX”. 

No mesmo plano, a Casa pretende ainda vir a constituir o maior acervo – físico e digital –, à escala global, de edições bíblicas de João Ferreira de Almeida de interesse histórico e bibliográfico, com especial foco nas edições produzidas entre 1681 e 1931. 

No princípio, está a casa

A tradução de Almeida continua a ser a mais vendida de sempre, em língua portuguesa: mais de 1700 edições, mais de 200 milhões de exemplaresOs promotores da iniciativa justificam, por isso, a ideia com o facto de a Bíblia continuar “a ser a vital compilação milenar onde milhões de pessoas buscam inspiração para a construção do sentido das suas próprias vidas”, ao mesmo tempo que “constitui uma chave imprescindível à decifração do pensamento, da memória e do quotidiano, mesmo daqueles que nunca a leram”. E acrescentam: “Texto Sagrado para crentes de mais de uma religião, mais do que um livro, a Bíblia é uma indispensável biblioteca. Os contributos ao seu estudo e aprofundamento, em perspetivas naturalmente diversas, permitem-nos mergulhar até às raízes que civilizacionalmente nos urdem.”

A Casa pretende, também, traduzir materialmente a ideia do encontro entre Deus e o Homem e a história do cruzamento de João Ferreira d’Almeida com a Bíblia – encontro que se projectou para o futuro através da tradução por ele encetada. Essa ideia de encontro e reunião “ocorre no espaço mais íntimo do que é humano: a casa”. E justifica-se: “A simbologia bíblica relativa ao conceito de casa é misteriosa, porém riquíssima. Desde logo pelo facto de bet(B), a primeira letra hebraica das Sagradas Escrituras, significar «casa». A primeira letra dessa que é a primeira palavra, bereshit, traduzida por «no princípio».Portanto, casa está no princípio de tudo: é o começo mas também o fim, o fito desse encontro entre Deus e o homem. Deus é o senhor de todo o espaço, mas decide igualmente habitar o espaço finito que criou, todavia, espaço de intimidade com o ser humano e com toda a restante criação.”

A construção “é física e visível – oikía, paredes, infraestrutura –, mas é também o elemento imaterial dessa reunião de Deus com a humanidade – oikos, espaço habitado –, afinal, lar, comunidade”. E, para os cristãos, a Casa assume ainda, de forma particular, a ideia de “tenda-tabernáculo”, “templo do povo de Deus” ou “ventre de Maria que acolheu o Emanuel e é a ekklesia, de que Cristo é o único pastor”. A Casa pretende, assim, traduzir também “esse ponto de união que perpassa toda a existência da humanidade”. 
(Ilustração acima: © Ilda David, Bíblia Ilustrada)

Uma sociedade inclusiva, uma dimensão global

Reflectindo sobre os seus objectivos culturais, a Casa afirma-se ainda como pretendendo dar um contributo “para a construção de uma sociedade mais inclusiva, inovadora e pensadora”, combatendo “a invisibilidade académica e cultural de um ilustre português” e fixando memórias, saberes e práticas inerentes à experiência das reformas religiosas do tempo de Ferreira de Almeida. Também o papel da tradução da Bíblia, como suporte de informação religiosa para os portugueses que viviam no Oriente e como veículo de ligação entre os falantes da língua de Camões, será um desiderato importante. 

A preocupação com o meio em que se insere, possibilitando a criação de emprego e a fixação de jovens investigadores e criativos, num meio demograficamente envelhecido e deprimido, também se manifesta nos propósitos enunciados. Tal como aconteceu com o filho da terra, “trata-se de guindar esta localidade portuguesa a uma dimensão global, levando-a às terras onde o ilustre mangualdense se tornou presente (Holanda, Malásia, Indonésia, Sri Lanka, Índia), mas também eminente através da sua tradução da Bíblia (América, África, enfim, todo o mundo)”. Um factor que pode atrair pessoas e grupos para visitar o interior do país, beneficiando, assim, outras actividades. 


(Ilustração : © Ilda David, Bíblia Ilustrada)

A ideia da Casa Ferreira de Almeida foi nascendo em conversas informais de vários pastores protestantes e evangélicos. A dado momento, alguém aventou a possibilidade de concorrer ao orçamento participativo. Organizações como a Sociedade Bíblica ou A Rocha (associação ambientalista de inspiração cristã) associaram-se à ideia, que foi ganhando o “entusiasmo” de muitas pessoas. 

O terreno previsto para a Casa está numa zona central e de confluência de vias importantes, diz Timóteo Cavaco. E isso permite que ela possa atrair muita gente: “Está a pouca distância de Aveiro, Coimbra, Viseu, um pouco mais do Porto, a menos de três horas de Lisboa e apenas um pouco mais longe do sul do país”, recorda. O sítio avista-se e está a apenas 200 metros da saída da A25, por onde circula o trânsito entre Aveiro e Espanha. E além dos turistas eventuais que por ali passem, a Casa pode ser inserida em rotas culturais, prevê o responsável da SBP. 

“Mudaram os caminhos, mudaram as casas”

E se a Casa não ganhar a votação do Orçamento Participativo? “Será mais complicado atingir estes objectivos, mas tentaremos na mesma com outros fundos e apoios”, diz Timóteo Cavaco. A Junta de Freguesia e a Câmara Municipal estão disponíveis para conversar e para ajudar a conseguir apoios. Mas, antes disso, os promotores querem mesmo ganhar esta votação até às 24 horas de domingo, dia 30.

Há 90 anos, Eduardo Moreira (1886, 1980), historiador e pastor protestante, que chegou a ser membro do Partido Republicano e do Grande Oriente Lusitano, publicava um texto sobre Ferreira d’Almeida, comemorativo do tricentenário de nascimento do tradutor. Escrevia ele, no Defensor da Verdade, e poderíamos quase repetir as suas palavras: 

“Quem percorrer, numa tarde seca e risonha, a estrada que liga Vila Cova, Mangualde e Viseu ficará hoje, como sempre, maravilhado com a soberba paisagem oferecida triunfalmente, generosamente, aos olhos ávidos do viandante, saciados então de suma beleza. A fita branca do macadame coleia montes e montes num serpear irrequieto; e lá-de-baixo chega-nos o rumor e o colorido discreto dos vales, o espetáculo sempre lindo dos maciços verdosos e do rio espelhento... 

Mudaram os caminhos, mudaram as casas, mudaram os homens mas não mudou a beleza da terra, desde que, vai para três séculos, um rapazito a contemplou de caminhada, com a curiosidade infantil dum cérebro que há-de ser fecundo e poderoso um dia. Filhote de Torre de Tavares, dirige-se a Lisboa, onde em casa de um tio clérigo fará a sua educação.”

A história desta Casa começava naquele instante, mesmo que nem o próprio soubesse ainda. 

(Quem pretender votar na Casa João Ferreira de Almeida pode fazê-lo de duas maneiras: por telefone, deve enviar uma mensagem para o número 3838, escrevendo depois OPP (espaço) 340 (espaço) 123456789YZ1 (número do cartão de cidadão, com nove algarismos, duas letras e um algarismo, tudo sem espaços). Na internet, pode ir-se ao endereço https://opp.gov.pt; depois de clicar na janela “vota aqui”, coloca-se, na zona de “pesquisar propostas”, o número 340, correspondente à Casa Ferreira de Almeida, carregando depois onde diz “votar neste projeto”.)

As ilustrações são todas reproduzidas de © Ilda David, Bíblia Ilustrada, tradução João Ferreira Annes d'Almeida, apresentação e fixação do texto José Tolentino Mendonça, ed. Assírio & Alvim/Círculo de Leitores




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