quarta-feira, 5 de setembro de 2018
“Acreditar num Deus criador implica cuidar da criação e da casa comum”
Texto de Maria Wilton
“Comportamentos mais ecológicos e força para resistir às seduções dos males que afetam a nossa casa comum”, defende Manuela Silva
(foto © Maria Marujo)
Na crise ecológica que estamos a viver, os desafios com que nos confrontamos “são de tal ordem que precisamos mesmo de rezar a Deus, para que converta os nossos corações para termos comportamentos mais ecológicos e força para resistir às seduções dos males que afetam a nossa casa comum”.
A economista Manuela Silva,responsável da rede Cuidar da Casa Comum(CCC), que reúne pessoas individuais, instituições, organizações e grupos católicos e de outras igrejas cristãs, refere-se deste modo aos objetivos da vigília de oração que se realiza sexta-feira, 7 de setembro, às 21h, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus (R. Camilo Castelo Branco, ao Marquês de Pombal), em Lisboa.
A iniciativa, diz a economista, tem como objetivo a reflexão sobre a encíclica Laudato Si’, publicada pelo Papa Francisco em 2015, dedicada ao ambiente e ao “cuidado da casa comum”. O tempo de oração pretende sensibilizar para o conhecimento da encíclica, levando os cristãos a uma conversão ecológica, no sentido de “um estilo de vida que não seja predador nem excludente de grande parte da população e até de outros seres vivos”.
Há uma acrescida responsabilidade ecológica que os cristãos devem demonstrar, diz Manuela Silva: acreditar num Deus criador implica acreditar que este confiou à humanidade a tarefa de cuidar da criação e da “casa comum”.
Entre as propostas da CCC, estão os “focos de conversão ecológica”, pequenos grupos que pretendem alargar a sensibilização para as questões ambientais e ecológicas. “Os focos têm por missão escutar o grito da nossa Casa Comum ‘contra o mal que lhe provocamos’, identificar, na vida quotidiana, ‘o uso irresponsável’ dos bens da Terra”, lê-se na apresentação dos objetivos. Ao mesmo tempo, os focos propõem-se “criar no seio das respetivas comunidades “pontes de diálogo com vista à construção de uma ecologia integral, tanto no plano dos comportamentos individuais como nas opções e práticas das comunidades da sua área de influência”.
No próximo sábado, uma outra iniciativa, esta de caráter mundial, terá concretização também em três cidades portuguesas: às 17h, Lisboa (concentração no Cais do Sodré), Porto (Praça da Liberdade) e Faro (Largo da Sé) participam na Marcha Mundial do Clima.
Francisco Ferreira, presidente da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, diz que muitos movimentos religiosos também estarão na marcha, algo que considera “muito positivo”: é “bom ver que há todo um conjunto de movimentos cristãos e mesmo de outras religiões” que se associam a pessoas não-crentes “nesta luta e a sentem como fundamental”, afirma. “Acho que esta é uma aliança muito feliz.”
Admitindo que a sensibilidade dos católicos portugueses em relação às questões ambientais esteja a aumentar, Francisco Ferreira lamenta, no entanto, que ela ainda esteja longe de muitas preocupações enunciadas pelo Papa na Laudato Si’: “Onde estamos mais aquém do trabalho com base na encíclica é precisamente dentro da própria Igreja", que devia ter um maior papel na mobilização dos crentes e na sua própria pegada ambiental – afirma.
Conciliar oração com ação é algo também fundamental para Marcial Felgueiras, responsável da Cruzinha, o centro algarvio de interpretação e investigação de A Rocha. Esta organização ambientalista ecuménica (que reúne cristãos de diferentes igrejas), nasceu em Portugal mas tem atividade em vários países, numa perspetiva mais próxima da Natureza e da investigação científica. A Rocha fez sua a missão de divulgar conhecimentos que possam ser traduzidos em práticas – na opinião de Marcial Felgueiras, é aí que falha a mensagem.
“É preciso passar de um evento limitado no tempo para a adoção de um estilo de vida que naturalmente satisfaz essas condições”, diz o responsável da Cruzinha. “As igrejas até podem promover uma ida a pé para a igreja mas, depois, temos a sensação de que já cumprimos o dever e podemos voltar à vida normal”, de consumo e desperdício. “Esse é o passo que falta dar.”
Acesso a água potável, um direito humano
Foi depois de publicar a Laudato Si’, que o Papa Francisco decidiu juntar a Igreja Católica ao Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, que a Igreja Ortodoxa já vinha promovendo desde há anos, sempre a 1 de Setembro. Também muitas igrejas evangélicas, luteranas e anglicanas se têm juntado à celebração.
Na mensagem para o Dia Mundial deste ano, o Papa Francisco destacou a importância da água, desde a constituição do corpo humano, até ao que ela significa no direito a uma vida digna. E afirma, citando um parágrafo da encíclica: “O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável.”
Nos próximos anos, muitas pessoas serão obrigadas a deixar as suas casas por causa da subida do nível das águas do mar
(foto © Maria Marujo)
Ainda há dias, referindo o problema das alterações climáticas, o arcebispo católico das Ilhas Fiji, Peter Loy Chong, lembrava, em entrevista à Ajuda à Igreja que Sofre, que vê diariamente, com os seus próprios olhos, a subida do nível das águas do mar. E alertava: “Nos próximos anos, os habitantes de 34 aldeias costeiras das Fiji serão obrigados a mudar as suas casas por causa da subida do nível do mar.”
É a partir de testemunhos como este que o Papa sublinha, na sua mensagem, a importância de preservar os mares e oceanos como parte integrante da criação. Francisco acrescenta que “não podemos permitir que os mares e oceanos se preencham com extensões inertes de plástico flutuante” e defende ser “inaceitável qualquer privatização do bem natural da água que seja contrária ao direito humano de poder ter acesso a ela”.
A mensagem de sábado remete para algumas das ideias e sugestões já feitas na encíclica dedicada ao “Cuidado da Casa Comum”. No documento de 2015, Francisco alertava para a necessidade da mudança de mentalidade e da cooperação entre crentes de modo a combater a degradação ambiental e as alterações climáticas. Pedia o Papa, na Laudato Si’: “Ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.”
“Ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar", pede o Papa Francisco (foto © Maria Marujo)
Os “mártires da Laudato Si’”
Na Igreja Católica, apesar de já haver grupos dedicados a esta questão, a publicação da encíclica impulsionou o surgimento de redes e iniciativas internacionais, um pouco por todo o mundo. A Laudato Si’, recorde-se, foi publicada cinco meses antes da realização, em França, da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, que culminou com a assinatura do Acordo de Paris.
Estes vários acontecimentos colocaram o foco no fenómeno das mudanças climáticas a nível mundial e motivaram iniciativas de muitos grupos cristãos, como foram os casos de uma peregrinação internacional ou um jejum pelo clima.
Já este ano, como resposta à retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris, mais de 700 instituições dos EUA, reunidas na Catholic Climate Covenant, assinaram a Declaração Católica do Clima. Nela reafirmavam o seu compromisso com o ambiente, depois de os EUA terem, há pouco mais de um ano, saído do Acordo de Paris.
Uma das iniciativas também surgidas na sequência da encíclica, foi o reconhecimento dos “mártires da Laudato Si’”, ativistas mortos por defender causas ambientais, cujos nomes e histórias são registados anualmente pela revista italiana Mondo e Missione.
Entre os mártires deste ano, estão Esmond Bradley, dos EUA, morto no Quénia por se opor à caça ilegal de elefantes; Ajit Maneshwar Naik, advogado indiano, que contestava a construção da sétima barragem no rio Kali e que significará a morte definitiva do curso de água de 184 quilómetros; e o brasileiro Paulo Sergio Almeida Nascimento, da associação Cainquirama, da Amazónia, assassinado depois de denunciar a contaminação de terras, em Barcarena (estado do Pará).
(Acerca deste tema, pode ler-se ainda o texto Vale a pena rezar pelo cuidado da criação?,escrito por Miguel Oliveira Panão; em Portugal, uma nota da Comissão Episcopal da Pastoral Social para o Dia Mundial chamou a atenção para a necessidade de mudanças estruturais na gestão dos recursos do planeta)
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