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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Centenas de católicos em vigília pela “necessidade de manifestar às vítimas o pedido de perdão”

PGR abriu 15 inquéritos por abusos

 | 22 Fev 2023

Abusos sexuais, vigília, oração, Jerónimos

Centenas de pessoas concentraram-se em vigília nos Jerónimos, pela “necessidade de manifestar às vítimas e seus familiares o pedido de perdão”. Foto © António Marujo/7Margens

Às nove da noite desta quarta-feira – início da Quaresma para os cristãos – já algumas centenas de pessoas se concentravam à porta da igreja do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, para a vigília convocada por um grupo informal de católicos. “A necessidade de, enquanto membros da Igreja, manifestar às vítimas e seus familiares o nosso pedido de perdão”, era, de acordo com a declaração inicial do grupo que a convocou, o objectivo da iniciativa, à qual acabaria por se juntar também, sozinho, o patriarca de Lisboa.

“Inteira solidariedade, inteira comunhão, inteira proximidade, como já manifestei a algumas [vítimas] e não pode ser de outra maneira; estamos aqui com elas e por elas”, justificou o cardeal Manuel Clemente, sobre as razões da sua presença na vigília. A participar na iniciativa, também se notavam algumas freiras com hábito e padres da diocese ou de diferentes congregações, bem como personalidades como o antigo juiz do Tribunal Constitucional, José Sousa e Brito, principal redactor da actual Lei da Liberdade Religiosa.

O silêncio foi “muito preenchido pela solidariedade, pela comunhão” com quem “foi vitimado” e “com todos quantos sofreram onde nunca deviam ter sofrido, concretamente em espaços eclesiais”, acrescentou o cardeal-patriarca. Mas também, disse ainda, ele traduziu a certeza de que “as feridas só se resolvem com Deus, acima do que são as nossas capacidades e boas vontades, a certeza de que no princípio, no meio e no fim está sempre Deus, a justiça de Deus e a misericórdia de Deus”.

Entre as nove e as dez foram sempre chegando mais pessoas e, no final, diante dos Jerónimos já haveria seguramente mais de um milhar. A quem não tinha, alguns voluntários entregavam uma vela, que outros ajudavam a acender. Velas e silêncio, apenas velas e silêncio, durante uma hora que terminou com a oração do Pai-Nosso, rezada em voz alta por todos os presentes.

“É mesmo preciso que a Igreja tome medidas”

Abusos sexuais, vigília, oração, Jerónimos

Houve vigílias em Braga, Porto, Coimbra, Fátima, Santarém, Oeiras, Palmela, Évora, Beja, Funchal e Ponta Delgada. Foto © António Marujo/7Margens

A iniciativa foi convocada na semana passada, logo depois de conhecido o teor do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica em Portugal. Este documento, apresentado na segunda-feira, 13 de Fevereiro, na Gulbenkian, em Lisboa, apontava para a existência de pelo menos perto de cinco mil vítimas de abusos sexuais por parte de membros do clero e de outros responsáveis da Igreja.

Por todo o país, realizaram-se vigílias semelhantes: Braga, Porto, Coimbra, Fátima, Santarém, Oeiras, Palmela, Évora, Beja, Funchal e Ponta Delgada foram os locais em que dezenas ou uma ou das centenas de pessoas (caso do Porto) se juntaram aos propósitos dos organizadores.

“Há muitas vítimas e queremos mostrar que a Igreja as ama e não quer o seu silêncio”, disse ao 7MARGENS, 18 anos, Gonçalo Coelho, estudante de Estudos Gerais na Universidade de Lisboa. “Queremos pedir perdão a todas as vítimas e a todas as famílias que sofrem”, acrescentou.

O jovem estudante considerava ainda que os católicos são “chamados a viver o amor fraterno com as vítimas e a pedir perdão por todos os padres que abusaram”, e rezando para que a Igreja “seja capaz de pedir o perdão e mudar”. Sobre o sentido da mudança, Gonçalo disse que prefere deixar isso para os decisores, mas esperando que o próprio Papa traga o tema para a Jornada Mundial da Juventude. “É mesmo preciso que a Igreja tome medidas”, concluiu.

“As vítimas que não soubemos cuidar”

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O cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, em declarações aos jornalistas no final: “A mudança de mentalidade já começou a acontecer na Igreja”. Foto © António Marujo/7Margens

 

“Muito satisfeito” com o número de pessoas presente nos Jerónimos, Joaquim Pedro Costa, um dos dinamizadores da vigília, considerou que o sentimento predominante entre as pessoas que participaram seria coincidente com o que motivou o grupo dinamizador.

“Este silêncio e a fragilidade da chama das velas traduzia aquela que foi a fragilidade de Jesus, que é a fragilidade das vítimas de quem não soubemos cuidar”, acrescentava André Folque, outro dos dinamizadores da iniciativa, também em declarações ao 7MARGENS.

“O mal só se ultrapassa quando se reconhece”, acrescentou Joaquim Pedro Costa. Esta vigília foi uma iniciativa nesse processo. “Vale o que vale para as vítimas, pois muitas estão à espera desse reconhecimento. “O relatório [da Comissão Independente] é apenas o início, que deve levar as pessoas a tomar consciência e a agir”, acrescentou.

Nas declarações aos jornalistas, no final, o patriarca considerou que a mudança de mentalidade já começou a acontecer na Igreja, “a pouco e pouco, também à medida que a própria mentalidade social foi mudando”, a par da própria legislação. Destacando o papel dos papas Bento XVI e Francisco, “que nos têm alertado constantemente para este problema, quer na Igreja quer na sociedade em geral”, Clemente defendeu que a hierarquia católica tem “tomado uma série de medidas”, sobretudo a partir da cimeira que o Papa dinamizou, em Fevereiro de 2019.

Esse trabalho vai continuar, assegurou o patriarca, com as comissões diocesanas e a sua coordenação nacional, no sentido de um “serviço de disponibilidade para acompanhar quem precisar de ser acompanhado e, sobretudo para prevenir”. E isso será também o que se pode esperar do dia 3 de Março, quando os bispos reunirem em assembleia especial para decidir medidas a tomar: “Habilitar as comissões diocesanas e a coordenação nacional para responder melhor a esta problemática.”

15 inquéritos abertos pela PGR e Chega a aparecer em peso

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Horas antes da vigília, a Procuradoria anunciou que abrira 15 inquéritos por abusos sexuais dentro da Igreja. Foto © António Marujo/7Margens


Horas antes da vigília de oração, tinha-se ficado a saber que a Procuradoria-Geral da República (PGR) tinha aberto 15 inquéritos a partir das 25 participações feitas pela Comissão Independente – alguns dos inquéritos concentram mais do que uma participação, de acordo com uma nota da PGR enviada ao 7MARGENS. Desses, seis inquéritos estão em investigação, enquanto os restantes nove foram arquivados. A Procuradoria pediu à CI, entretanto, mais elementos sobre dois casos em que a informação é “demasiado vaga”.

O comunicado da PGR esclarece os casos que foram arquivados e as suas razões: houve arquivamentos de casos ocorridos em Cascais (prescrição), Almada, Setúbal e Cantanhede (falta de indícios suficientes), Vila Real (falta de provas), Braga (por impossibilidade de conhecer a identidade das vítimas ou dos alegados agressores), Sesimbra (vítima desconhecida e falta de provas), Loures (morte do alegado abusador) e ainda um outro caso em Cascais, porque os factos já tinham sido julgados tendo havido condenação.

Entre os 15 inquéritos abertos, sete tiveram origem em quatro denúncias feitas pela Comissão de Protecção de Menores e Pessoas Vulneráveis do Patriarcado de Lisboa. Dois inquéritos estão em investigação, os restantes foram arquivados por falta de indícios suficientes (Lisboa), prescrição (Coimbra), falta de provas (Sintra), por não terem sido apurados os factos (também em Sintra) e por estar em investigação (Loures).

Outras denúncias feitas por outras fontes que não a CI estão também a ser ou já foram averiguadas pela Procuradoria. É o caso de inquéritos em Guimarães e Lisboa, depois de uma queixa chegada à Presidência da República, uma outra arquivada em Sintra por prescrição, e ainda duas denúncias anónimas que, em Lamego e Santarém, tiveram “despacho final de arquivamento”, diz a nota da PGR, que dá conta ainda de outras duas denúncias recebidas na procuradoria e encaminhadas “para o Ministério Público competente com vista à instauração de inquérito”.

Quem promete para o próximo mês a apresentação de um pacote de medidas contra abusos sexuais é o grupo parlamentar do Chega, que apareceu em peso na vigília, embora o líder do partido, André Ventura, tenha recusado qualquer ideia de aproveitamento da iniciativa.  Rejeitando a ideia de a vigília ser “política ou partidária”, Joaquim Pedro Costa afirmou que o facto de Ventura e os outros deputados terem aparecido em grupo levanta “pelo menos suspeita sobre as intenções”. Ao mesmo tempo, valorizou a presença do patriarca: “Ele não se importou que fosse uma iniciativa oficial e foi importante querer associar-se.”



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