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domingo, 3 de março de 2019

Ex Cathedra

Ando às voltas com a leitura da Populorum Progressio, em cuja feitura Paulo VI, um Papa reabilitado pelo tempo, pontifica sabedoria e registra a preocupação da Igreja com os rumos da humanidade. Em seu tempo já era bem conhecido o estrago que correntes políticas radicais - como nazismo, fascismo e comunismo,- provocaram e podem a qualquer momento voltar a causar. Supressoras da liberdade em nome de um nirvana de ordem, progresso e libertação da escravidão, estas ideologias são cativantes para países em desordem, atrasados e de fato espoliados. Remédios sempre à mão na prateleira das utopias, operam como o carrapaticida que combate a praga enquanto também mata o hospedeiro.

Mas não podemos esquecer, por danosas que sejam, que o florescimento e a adoção da utopias são precedidos por momentos históricos insustentáveis. A Alemanha, batida e humilhada, com inflação astronômica, era caminho aberto para um histriônico maluco, que amalgamou ares de irada divindade com o gosto alemão pela ordem. A Rússia, atrasada até o último, desgastada por conflitos e comandada por um czar atordoado por preocupações familiares - marcadamente pela hemofilia do herdeiro e patéticas intervenções do mistificador Rasputin,- era terreno arado e fértil para movimentos de violenta sedição. Da mesma forma Mussolini não brotou por geração espontânea. Inicialmente socialista, valeu-se de poderosa oratória e gosto pelo poder para liderar os camisas-negras e a Marcha sobre Roma, combater os socialistas e tornar-se o Duce.

Vender terrenos na Lua ou paraísos terrestres não é para qualquer um. É preciso reconhecer o talento de quem o faz, por mais deplorável que isto seja. Quem compra tais ideias o faz por inocência ou ganância, no caso dos terrenos, ou por despreparo, leniência ou desespero, no que toca a promessa do Éden na Terra. Tais condimentos negativos - inocência, ganância, despreparo, leniência ou desespero,- podem ser combatidos por educação, amadurecimento e bem estar social. É sempre bom não esquecer que os regimes milagreiros e violentos instalam-se pelo clamor suspenso no ar, à espera de um Führer, de um Duce, de um Timoneiro. As utopias são precipícios, mas sua sedução resulta da erosão da legitimidade do poder constituído.

O tempo e a verdade precisam operar no coração humano para que o impossível se torne mais próximo, ainda que inatingível. Não é produtivo, nem sensato, pregar o capitalismo entre desvalidos ou defender o liberalismo entre miseráveis. Como também não passa de tempo perdido defender a extinção da propriedade privada entre latifundiários e banqueiros.

Paulo VI, culto e sábio, defendeu a criação de um fundo mundial para que os países menos desenvolvidos sejam socorridos e orientados para o desenvolvimento. Em sua exortação, porém, ressalta que “qualquer programa feito para aumentar a produção não tem, afinal, razão de ser senão colocado ao serviço da pessoa”, ou seja, não se pode admitir fome no campo espigado ou condição sub humana de operários. Menciona o “Enchei a terra e sujeitai-a” para lembrar que a criação é para o homem e que todo homem tem o direito “de nela encontrar o que lhe é necessário”. Rafael López Jordán, comentando a Encíclica, faz uma referência à obra “Eclissi dell´intellettualle”, de Elémire Zolla, publicada em 1959, que responsabiliza a tecnificação progressiva pela crescente desumanização e não vê caminho de saída porque a técnica tem “um poder despótico sobre o homem”. Zolla combateu o conformismo, tão bovino entre os homens.

A má distribuição da riqueza mundial é de estarrecer e por certo a tecnificação, guante novo na mão dos mais ricos, acelerou a desigualdade. Os números podem oscilar, mas a Oxfam International, entidade criada em Oxford em 1942, que combate a injustiça que causa a pobreza, informa que algo em torno de 80% da riqueza mundial encontram-se nas mãos de 1% da humanidade. Paulo VI não furtou-se de realçar truísmos: “as especulações egoístas devem ser banidas” e “os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos”.

Em geral bem acolhida no mundo, com a autoridade da Cátedra de Pedro, ainda que não tratando de artigos de fé, a Populorum Progressio também enfrentou oposições, como a do New York Times, que sugeriu que a Encíclica tinha cunho marxista. Na meca do capitalismo, não foi surpresa. Este é um embate sem fim, que coloca os homens em polos opostos. Num destes polos rosnam lobos. Tudo parece tão claro mas, ainda assim, mesmo conhecendo os meandros da desigualdade e dos egoísmos tantos, há quem faça pouco caso do pecado original.

J. B. Teixeira



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