Vez por outra
consigo me superar em matéria de ingenuidade e burrice. Fui a uma agência
bancária para fazer uma transferência e cometi um erro de presunção. Como era
conhecido na agência fui sem um documento de identidade. Já na porta giratória
tive a premonição de que a coisa não correria bem. A porta acusou algum metal.
Já esvaziara os bolsos de tudo que fosse metálico, mas o sistema seguia acusando
algo. Um guarda privado, que diz apenas cumprir seu dever, mas o faz com
singular antipatia, passou a ditar meus movimentos. Recue, avance, verifique
seus pertences ... E nada! Me ocorre então que meus sapatos, de segurança
industrial, talvez tenham uma proteção metálica. O senhor estava trabalhando,
me pergunta o guarda. Raios, o que este camarada quer saber? Já agastado, acho
que respondi rosnando.
A que ponto
chegamos! Eu não estava tentando ingressar no Pentágono, em Fort Knox ou na
Casa da Moeda. E me olhando no espelho penso que não tenho uma cara tipicamente
lombrosiana. O senhor estava trabalhando? Ora bolas, é só o que sei fazer. E
interessa a poucos o que eu estava fazendo. Fui inspecionado com um detector de
metal manual. Que não detectou nada ... O guarda, então, sem esboçar qualquer
pedido de desculpas, praguejou contra a porta e arrematou que ela estava com
problemas. Entrei, enfim. Para levar um balde de água fria em minhas
pretensões. O senhor não trouxe um documento, me perguntou uma moça que sabe
quem sou. Respondi que não o trouxera, mas que ela sabia que eu ... era eu.
Lamento, mas não pode. Dito isto, me olhou como se estivesse diante de um
lunático. Lunático, não. Ingénuo e burro, sim. Disse a ela que sou de um tempo
em que as pessoas acreditavam umas nas outras, de um tempo que já não existe. Sem
alternativa, caminhei um bocado, mastigando minha tolice, busquei o documento e
retornei.
A caixa do
banco, a quem estendi minha carteira de motorista, mal a olhou e muito menos a
retirou do invólucro plástico um tanto turvo para verificar se era verdadeira.
Não poderia ser falsa? Concluída a transferência, tratei de cair fora antes que
me pedissem um exame datiloscópico. Naquele tempo, que já não existe, conhecíamos
uns aos outros. Na padaria, no mercado, na farmácia, no banco, na livraria. Não
se tinha as vantagens do anonimato, típico das metrópoles, mas havia o lado
bom. Porque havia mais confiança nas relações sociais.
Quando retornei
a Montenegro, depois de quase três décadas com passagens esporádicas, percebi
que predominavam rostos desconhecidos. É claro que não conhecia os filhos de
toda uma gente e não identificava muitos que um dia vira crianças, mas não era
só isto. A cidade recebera fluxos migratórios e sua feição se modificara. Minha
miopia social não estava sozinha, porquanto a sociedade de fato mudara
substancialmente.
Sem o
reconhecimento de identidades, as vilas - como chamo carinhosamente nossas
cidades médias e pequenas,- perdem coesão e é exatamente isto que vejo nas
redondezas. O cada um por si que resulta da supervalorização da individualidade
e a desconfiança nas autoridades, de olho vidrado nos próprios interesses, tem
gerado estragos enormes.
Como chegamos
nisto? Bem, no tempo das selfies não
deveriam nos surpreender o desprestígio da vida comunitária e a decadência do
bem comum. Sob forte atmosfera egocêntrica, tanto os comportamentos
reprováveis, mas socialmente aceites, como o egoísmo, o exibicionismo e a usura,
quanto os ilícitos, materializados na corrupção desbragada, são subprodutos da
mesma fábrica de injustiças e generalizada indiferença, gestada no ventre do
mal, no útero do inferno.
Fui longe
demais? Gostaria que sim, mas acho que não. O homem afastou-se de Deus em escala
planetária. O que se passa na Síria, com o apoio dos Estados Unidos às forças
de oposição ao governo constituído, revela o estertor do que nos resta de
humanidade. Dias atrás um vídeo mostrou enfermeiras abraçadas, num berçário
destruído num bombardeio. Soluçavam perto de recém nascidos ensanguentados ou recém
mortos. Coisa digna de um Herodes.
Quem está no
comando? Não é Deus. Assim como minha identidade é, sob procedimentos de um
banco, colocada em dúvida protocolar por pessoas que sabem quem sou, a barbárie
que se dá na Síria é um sintoma de perda do que deveria nos caracterizar, a
identidade humana.
J. B. Teixeira |
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