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segunda-feira, 25 de março de 2019

Identidade

Vez por outra consigo me superar em matéria de ingenuidade e burrice. Fui a uma agência bancária para fazer uma transferência e cometi um erro de presunção. Como era conhecido na agência fui sem um documento de identidade. Já na porta giratória tive a premonição de que a coisa não correria bem. A porta acusou algum metal. Já esvaziara os bolsos de tudo que fosse metálico, mas o sistema seguia acusando algo. Um guarda privado, que diz apenas cumprir seu dever, mas o faz com singular antipatia, passou a ditar meus movimentos. Recue, avance, verifique seus pertences ... E nada! Me ocorre então que meus sapatos, de segurança industrial, talvez tenham uma proteção metálica. O senhor estava trabalhando, me pergunta o guarda. Raios, o que este camarada quer saber? Já agastado, acho que respondi rosnando.

A que ponto chegamos! Eu não estava tentando ingressar no Pentágono, em Fort Knox ou na Casa da Moeda. E me olhando no espelho penso que não tenho uma cara tipicamente lombrosiana. O senhor estava trabalhando? Ora bolas, é só o que sei fazer. E interessa a poucos o que eu estava fazendo. Fui inspecionado com um detector de metal manual. Que não detectou nada ... O guarda, então, sem esboçar qualquer pedido de desculpas, praguejou contra a porta e arrematou que ela estava com problemas. Entrei, enfim. Para levar um balde de água fria em minhas pretensões. O senhor não trouxe um documento, me perguntou uma moça que sabe quem sou. Respondi que não o trouxera, mas que ela sabia que eu ... era eu. Lamento, mas não pode. Dito isto, me olhou como se estivesse diante de um lunático. Lunático, não. Ingénuo e burro, sim. Disse a ela que sou de um tempo em que as pessoas acreditavam umas nas outras, de um tempo que já não existe. Sem alternativa, caminhei um bocado, mastigando minha tolice, busquei o documento e retornei.

A caixa do banco, a quem estendi minha carteira de motorista, mal a olhou e muito menos a retirou do invólucro plástico um tanto turvo para verificar se era verdadeira. Não poderia ser falsa? Concluída a transferência, tratei de cair fora antes que me pedissem um exame datiloscópico. Naquele tempo, que já não existe, conhecíamos uns aos outros. Na padaria, no mercado, na farmácia, no banco, na livraria. Não se tinha as vantagens do anonimato, típico das metrópoles, mas havia o lado bom. Porque havia mais confiança nas relações sociais.

Quando retornei a Montenegro, depois de quase três décadas com passagens esporádicas, percebi que predominavam rostos desconhecidos. É claro que não conhecia os filhos de toda uma gente e não identificava muitos que um dia vira crianças, mas não era só isto. A cidade recebera fluxos migratórios e sua feição se modificara. Minha miopia social não estava sozinha, porquanto a sociedade de fato mudara substancialmente.

Sem o reconhecimento de identidades, as vilas - como chamo carinhosamente nossas cidades médias e pequenas,- perdem coesão e é exatamente isto que vejo nas redondezas. O cada um por si que resulta da supervalorização da individualidade e a desconfiança nas autoridades, de olho vidrado nos próprios interesses, tem gerado estragos enormes.

Como chegamos nisto? Bem, no tempo das selfies não deveriam nos surpreender o desprestígio da vida comunitária e a decadência do bem comum. Sob forte atmosfera egocêntrica, tanto os comportamentos reprováveis, mas socialmente aceites, como o egoísmo, o exibicionismo e a usura, quanto os ilícitos, materializados na corrupção desbragada, são subprodutos da mesma fábrica de injustiças e generalizada indiferença, gestada no ventre do mal, no útero do inferno.

Fui longe demais? Gostaria que sim, mas acho que não. O homem afastou-se de Deus em escala planetária. O que se passa na Síria, com o apoio dos Estados Unidos às forças de oposição ao governo constituído, revela o estertor do que nos resta de humanidade. Dias atrás um vídeo mostrou enfermeiras abraçadas, num berçário destruído num bombardeio. Soluçavam perto de recém nascidos ensanguentados ou recém mortos. Coisa digna de um Herodes.

Quem está no comando? Não é Deus. Assim como minha identidade é, sob procedimentos de um banco, colocada em dúvida protocolar por pessoas que sabem quem sou, a barbárie que se dá na Síria é um sintoma de perda do que deveria nos caracterizar, a identidade humana.

J. B. Teixeira



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