Que as pessoas
viajam de câmara em riste, isto já não é novidade depois que os japoneses
conseguiram formar uma legião de imitadores. O viajante imagina mostrar fotos e
vídeos para filhos, irmãos e amigos. Confesso que já cometi esta besteira, bem
antes do aparecimento hegemónico da rede mundial. Poucos se interessam em ver
ou assistir, sobretudo nos dias que correm, quando se pode visitar logradouros
e museus sem tirar o assento da cadeira.
Antigamente
fotografar era dispendioso. Comprava-se o filme, sacavam-se las fotos e depois
enviávamos para a revelação. Alegrias e decepções então se sucediam. Uma ou
outra foto velava - por conta de uma intromissão luminosa na caixa da máquina,-
ou o rolo não fora bem instalado e perdera-se por inteiro ... Por conta disto
algumas fotos dignas de um Pulitzer jamais conheceram o sucesso. Era penoso e
caro para a classe média, o que explica o número baixo de fotos nos salvados de
cada um. Em compensação, o pouco que se tem vale ouro no acervo pessoal. Além
do custo, restava um certo pudor de não se exibir, que cerceava a vaidade.
O surgimento das câmaras digitais causou uma guinada. Podia-se fotografar à vontade e não mais
dependíamos da revelação. Não bastassem tamanhas vantagens, ainda era possível
verificar na mesma hora como ficara a foto e repeti-la, se necessário. É claro
que também fui seduzido por tais facilidades e até hoje obtenho mais de um
instantâneo se o material retratado for de alto interesse, com o objetivo de
selecionar as melhores fotos dentre muitas.
De qualquer
forma, bater fotos a esmo é uma coisa, enviá-las para o mundo é outra, e aqui entra Fidêncio em nossa história. Participante
pouco ativo de um grupo de colegas de juventude, ampliou suas intervenções para
informar onde anda e o que tem visto pela Península Ibérica. Acompanhado pela
esposa, parece marinheiro de primeira viagem, mais aplicado que recém
convertido. Tem enviado fotos que permitem identificar seu itinerário. Passou
pelo Porto, foi a Lisboa, voou para Madrid, onde visitou o Santiago Bernabeu e
cumpriu um tour em ónibus aberto.
Ontem esteve num
museu de arte. Compartilhou com o grupo quarenta e duas fotos de telas de
Picasso e Goya. Todas de telas diferentes, o que me faz pensar que caminhava
pelas salas com seu celular engatilhado, como quem tem quinze minutos para
percorrer dezasseis salas com Velasquez, Rubens, Caravaggio, ... Parece mais
preocupado em registar a viagem com o carimbo do “estive aqui” do que entregar-se ao deleite do banho de arte e de
história.
Hoje foi a outro
museu, de onde enviou novamente quarenta e duas fotos. Não, não me enganei. O
fato de repetir a quantidade de fotos é uma curiosidade a mais. Os registos desta feita foram de canhões e armaduras. De todos os tipos, tamanhos e
origens. Sem dúvida alguma trata-se de uma exposição única, mas Fidêncio perdeu
a noção, se é que algum dia a teve.
Para corroborar a
tese, à noite enviou foto dos pratos que escolheram na janta. Um peito de
frango recoberto por algo indefinível, rodelas de cenoura e ervilhas, precedido
por uma espécie de capelete. A série de fotos foi encerrada por um close de
duas garrafas de vinho tinto. Devidamente vazias.
Tudo isto tem
sido compartilhado com um bando de mal educados. E sobretudo cruéis, porque não
dirigem uma só pergunta a Fidêncio, defraudando toda a expectativa que este
certamente criara. Quer ser admirado e os parceiros não lhe dão pelota. Falta
fraternidade, tão óbvia era a carência de algum aplauso. O silêncio tem o peso
de apupos. A indiferença, de falta de caridade.
Ainda assim
Fidêncio posta, a cada dia, mais e mais fotos. Diante de uma banca de frutas, outra
ao pé de um monumento, mais refeições, mais selfies, mais ... Parece pensar que
suas fotos provocam a mesma curiosidade que instantâneos de Marte. Com um
marciano ao fundo, é claro.
Algo está
enguiçado na sociedade contemporânea. Não parece muito normal que os adultos se
prestem a este papel, que lembra crianças na busca pelo protagonismo diante de
visitas, trazendo para a sala pelo menos metade de seus brinquedos. Esquecido e
saudoso de seu papel, o bom senso manda lembrança.
J. B. Teixeira |
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