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segunda-feira, 25 de março de 2019

Kedi

O título é o nome de um filme cujas estrelas são gatos de rua em Istambul e inicia com uma citação muito simpática, que transmite mais ou menos o seguinte pensamento: “Diz-se que os gatos têm consciência da existência de Deus. Enquanto os cães acham que as pessoas são Deus, os gatos não”. Isto explicaria por que os gatos nos esnobam?

Temos cachorros e uma gata em nossa casa e gostamos de todos. Gata dentro, cães no lado de fora, sem intercâmbio. Como se vivessem nas Coreias do Norte e do Sul, tendo vidraças como seu paralelo 38. Enquanto os cães farejam frestas, identificando inimigos e procurando vias de ataque, com seu habitual açodamento, a gata desfila suas soberba e elegância, segura, salvo um descuido, de que é intocável.

Pequenino, tive um gato cinza. Tanto quanto me lembro, Mimo era dócil e seu comportamento era ímpar: a perambular pela vizinhança, quando chamado pelo nome voltava para casa. Esta solicitude não é lá muito comum em gatos. Certa noite, talvez em madrugada donjuanesca, envolveu-se numa briga e saiu lanhado na pata. O ferimento evoluiu rapidamente para tétano e nunca mais o vi. Morrera e meus pais deram um jeito de sepultá-lo enquanto estava na escola.

Esta, aliás, era a prática na casa paterna, sempre com o objetivo de minimizar sofrimentos. Tivemos cães, gatos, passarinhos e até um macaco, um sagui de nome Johny, que morreu de insolação por enredar-se com sua corrente numa parreira. Pura ironia! Viera da quente Bahia, atravessara dois invernos gaúchos, mercê dos cuidados que lhe foram dedicados: tinha sua casinha, com lâmpadas para aquecê-lo em noites frias. Pois se foi por conta justamente do sol ...

Acompanhamos o período de choca de canarinhos-belga, nos deleitamos com seus filhotes e sabíamos que isto encantava nossa mãe. Quando algo corria mal, lastimávamos, mas sem drama. Quantos cachorros foram atropelados, num tempo em que estes escapuliam pelos portões mais francos! Três, pelo menos. Morte cruel, fruto de descuidos. O que se dava, então? Substituíamos o rei morto e eis que tínhamos um rei posto. Na distância dos anos aprecio esta solução, que longe estava de ser desalmada. Subjacente a este procedimento havia dois recados: bicho é bicho e a morte é certa. Hoje isto seria considerado herético por muitos.

Na rua de minha infância, aquela de que jamais nos esquecemos, havia um cachorro, da família Santana, que vivia mais nas calçadas que em sua própria casa. Apolo não fazia jus ao seu nome. Preto com áreas amarelas, contava com a simpatia de todos, mas não era nada bonito. Teve vida longa, resistiu a incidentes, inclusive uma queimadura que lhe descarnou o lombo, cuja extensão parecia tê-lo condenado irremediavelmente. Tinha, porém, a virtude dos vira-latas, menos sensíveis aos trancos da existência. Apolo morreria de velho, superando momentos difíceis, contra todos os perigos e prognósticos.

Os bichos domésticos de então comiam sobras da mesa, o que hoje já se tornou exceção. Os cães eram aquinhoados com ossos de costela e outras iguarias de assados domingueiros. As rações, quando surgiram, tinham má reputação. Veterinários? Raramente eram requisitados além dos limites de sítios e fazendas, onde aplicavam seus conhecimentos na pecuária. Banho? Caseiro. Tosa? Não, isto era coisa de ovelhas e esquiladores.

Desde então o comércio envolvido com a criação de animais domésticos evoluiu de maneira meteórica, com requintes inimagináveis, cuja lista seria aborrecida. Bicho deixou de ser bicho e, para muitos, até faz parte da família. Confesso minha estranheza. A gata de nossa caçula está ao lado do computador enquanto escrevo. Gosto muito dela, mas bicho segue sendo bicho. 

Dias atrás um conhecido amanheceu com mensagens na rede social lastimando a perda de seu cachorro. Frases de consolação brotaram instantaneamente. Este cachorro era especial, reforçou o ex-dono. Pela minha experiência, todo mundo acha que seu cão é especial e que faz coisas que nenhum outro conseguiria. Tudo bem, doce ilusão que não merece contestação. Não me manifestei, para não passar por desrespeitoso no luto, mas bem que gostaria de sugerir a máxima da infância: rei morto, rei posto. Venci a tentação. Preferi não perder o amigo ...

J. B. Teixeira



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