O título é o nome
de um filme cujas estrelas são gatos de rua em Istambul e inicia com uma citação
muito simpática, que transmite mais ou menos o seguinte pensamento: “Diz-se que os gatos têm consciência da
existência de Deus. Enquanto os cães acham que as pessoas são Deus, os gatos
não”. Isto explicaria por que os gatos nos esnobam?
Temos cachorros e
uma gata em nossa casa e gostamos de todos. Gata dentro, cães no lado de fora,
sem intercâmbio. Como se vivessem nas Coreias do Norte e do Sul, tendo vidraças
como seu paralelo 38. Enquanto os cães farejam frestas, identificando inimigos
e procurando vias de ataque, com seu habitual açodamento, a gata desfila suas soberba
e elegância, segura, salvo um descuido, de que é intocável.
Pequenino, tive
um gato cinza. Tanto quanto me lembro, Mimo era dócil e seu comportamento era
ímpar: a perambular pela vizinhança, quando chamado pelo nome voltava para
casa. Esta solicitude não é lá muito comum em gatos. Certa noite, talvez em
madrugada donjuanesca, envolveu-se numa briga e saiu lanhado na pata. O
ferimento evoluiu rapidamente para tétano e nunca mais o vi. Morrera e meus
pais deram um jeito de sepultá-lo enquanto estava na escola.
Esta, aliás, era
a prática na casa paterna, sempre com o objetivo de minimizar sofrimentos. Tivemos
cães, gatos, passarinhos e até um macaco, um sagui de nome Johny, que morreu de
insolação por enredar-se com sua corrente numa parreira. Pura ironia! Viera da
quente Bahia, atravessara dois invernos gaúchos, mercê dos cuidados que lhe
foram dedicados: tinha sua casinha, com lâmpadas para aquecê-lo em noites
frias. Pois se foi por conta justamente do sol ...
Acompanhamos o
período de choca de canarinhos-belga, nos deleitamos com seus filhotes e
sabíamos que isto encantava nossa mãe. Quando algo corria mal, lastimávamos, mas
sem drama. Quantos cachorros foram atropelados, num tempo em que estes
escapuliam pelos portões mais francos! Três, pelo menos. Morte cruel, fruto de
descuidos. O que se dava, então? Substituíamos o rei morto e eis que tínhamos
um rei posto. Na distância dos anos aprecio esta solução, que longe estava de
ser desalmada. Subjacente a este procedimento havia dois recados: bicho é bicho
e a morte é certa. Hoje isto seria considerado herético por muitos.
Na rua de minha
infância, aquela de que jamais nos esquecemos, havia um cachorro, da família
Santana, que vivia mais nas calçadas que em sua própria casa. Apolo não fazia
jus ao seu nome. Preto com áreas amarelas, contava com a simpatia de todos, mas
não era nada bonito. Teve vida longa, resistiu a incidentes, inclusive uma
queimadura que lhe descarnou o lombo, cuja extensão parecia tê-lo condenado
irremediavelmente. Tinha, porém, a virtude dos vira-latas, menos sensíveis aos
trancos da existência. Apolo morreria de velho, superando momentos difíceis, contra
todos os perigos e prognósticos.
Os bichos
domésticos de então comiam sobras da mesa, o que hoje já se tornou exceção. Os
cães eram aquinhoados com ossos de costela e outras iguarias de assados
domingueiros. As rações, quando surgiram, tinham má reputação. Veterinários?
Raramente eram requisitados além dos limites de sítios e fazendas, onde
aplicavam seus conhecimentos na pecuária. Banho? Caseiro. Tosa? Não, isto era
coisa de ovelhas e esquiladores.
Desde então o
comércio envolvido com a criação de animais domésticos evoluiu de maneira
meteórica, com requintes inimagináveis, cuja lista seria aborrecida. Bicho
deixou de ser bicho e, para muitos, até faz parte da família. Confesso minha
estranheza. A gata de nossa caçula está ao lado do computador enquanto escrevo.
Gosto muito dela, mas bicho segue sendo bicho.
Dias atrás um
conhecido amanheceu com mensagens na rede social lastimando a perda de seu
cachorro. Frases de consolação brotaram instantaneamente. Este cachorro era
especial, reforçou o ex-dono. Pela minha experiência, todo mundo acha que seu
cão é especial e que faz coisas que nenhum outro conseguiria. Tudo bem, doce
ilusão que não merece contestação. Não me manifestei, para não passar por
desrespeitoso no luto, mas bem que gostaria de sugerir a máxima da infância:
rei morto, rei posto. Venci a tentação. Preferi não perder o amigo ...
J. B. Teixeira |
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