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sábado, 6 de setembro de 2014

A guerra que só a Igreja tentou impedir

O jornalista Lorenzo Del Boca fala dos interesses nacionais e das dinâmicas que levaram à Primeira Guerra Mundial, apesar dos apelos veementes do Papa Bento XV


Roma, 05 de Setembro de 2014 (Zenit.org) Antonio Gaspari


Em 4 anos, 3 meses e 14 dias de combates, a Primeira Guerra Mundial viu morrer 37 milhões de pessoas, representando 57,6% dos soldados mobilizados pelas várias nações. Dez milhões foram as mortes entre a população civil. A Itália pagou com um milhão e meio de vítimas. Um "massacre inútil" como predito pelo Papa Bento XV. Considerando também os danos materiais, nenhuma das Nações envolvidas – ou seja, Grã-Bretanha, França, Rússia, Itália, EUA, Alemanha, Áustria-Hungria, Turquia e Bulgária - poderia dizer que não sofreu perdas.

Mas como chegamos à primeira Guerra Mundial? Quais eram as forças em campo e como se alinharam? A Itália estava despreparada e sem armas, por que entrou na guerra? Quais foram as razões que impediram que a Santa Sé parasse a Grande Guerra?

Perguntas que ainda hoje, depois de quase um século, não têm uma resposta definitiva. Perguntas que Zenit fez a Lorenzo Del Boca, jornalista e ensaísta, ex-presidente da Ordem Nacional dos Jornalistas, actualmente vice-presidente da Fundação da Feira Internacional do Livro de Turim.

Entre os muitos livros de história escritos e publicados por Del Boca está também "Grande Guerra, pequenos gerais. Uma crónica feroz da Primeira Guerra Mundial", publicado pela UTET. O jornalista está actualmente em processo de escrever um outro livro sobre a Primeira Guerra Mundial que deveria ser lançado em 2015, cem anos desde o seu começo.

Como e por que a guerra começou? De acordo com Del Boca: "Há pelo menos uma dúzia de anos, os governos e os exércitos de toda a Europa estavam se preparando para declarar a guerra e foram à procura de um pretexto, custoso a nível diplomático, que lhes permitisse começar a disparar sem parecer arrogantes valentões. Os franceses nutriam um desejo de vingança após a derrota sofrida em 1870 em Sedan, e continuavam a reivindicar direitos sobre a Alsácia e a Lorena. Os alemães tinham preparado um plano de invasão da Rússia meridional. Mas também os russos tinham um – espectacular e mútuo - para atacar a Alemanha do norte".

"Enquanto à Áustria - continua Del Boca – o estado-maior tinha planeado despedaçar a Itália que continuava a considerar ‘coisa sua’ e à qual não perdoava as guerras do Renascimento que lhe tinham roubado territórios considerados vitais, como Veneza. Tinham pensado tirar proveito do terremoto de Messina, no início do século, que tinha levado à Sicília a maior parte das forças armadas. Foi o imperador austro-húngaro Francisco José, que não autorizou um ataque que resultaria covarde e traiçoeiro. Porém, o verdadeiro estopim, destinado a arrastar um continente em guerra, estava no coração dos Balcãs, onde etnias e nacionalismos estavam criando as condições para um cocktail incandescente".

Segundo o ensaísta, na Áustria, o herdeiro do trono Francisco Ferdinand não era bem-vindo e por isso foi enviado para Sarajevo com a esperança, não escondida, de que o matassem. "Um crime - explica – teria atingido o duplo objectivo de libertar o governo do perigo de um inepto no limiar de poder absoluto e de satisfazer os soldados que estavam implorando por uma desculpa para acender a pólvora de um conflito Estranhamente, o atentado organizado pelos jovens da "mão negra" havia falhado.

Um dos conspiradores Nedeljko Cabrinovic (que todo mundo chama de "Nedjo") lançou a bomba contra o carro imperial. Mas a bomba não funcionava a percussão, explodia no tempo, e antes que o artefacto estourasse, o objectivo já estava muito longe para ser danificado. A bomba envolveu o carro que estava atrás, ferindo dois oficiais.

O arquiduque foi recebido na Câmara Municipal, onde a cerimónia de boas-vindas seria realizada. Decidiram cancelar todos os compromissos que permaneceram. O herdeiro do trono tomou seu lugar no carro, mas o motorista não foi informado de que o programa tinha sido alterado e, em vez de atravessar a avenida, para sair da cidade, foi pelo itinerário planeado originalmente. Por uma dessas coincidências da história, a estrada erroneamente usada era a Francisco José".

Alguns viram nesse “equívoco” uma prova de conspiração. Porque, diz Del Boca, “por aquela estrada, em frente à padaria-Moritz Schiller estava andando outro dos conspiradores, Gavrilo Princip. Era muito abatido porque já tinha verificado o fracasso do atentado, tinha visto o amigo levado à prisão pelos policiais e pensava que, em breve, o estariam buscando também. Encontrou diante de um alvo que não podia errar. Disparou só dois tiros mas foram suficientes para matar o arquiduque e sua esposa.

Apesar da gravidade do atentado por vários dias os estados europeus permaneceram parados. A Áustria queria uma represália violenta e final contra a Sérvia, mas não foi capaz de enfrentar sozinha, os riscos de um conflito que não poderia continuar a ser um episódio regional. Viena precisava do apoio da Alemanha, e só quando ele chegou, assinou o ultimatum para a Sérvia.

Os outros países, especialmente a Inglaterra, tentaram convocar uma cúpula in extremis para encontrar uma solução e evitar o risco do efeito-dominó. Inútil. Viena ordenou a invasão da Sérvia e a Rússia interveio em defesa dos povos balcânicos que, tradicionalmente, estavam na sua órbita de amigos. A Alemanha declarou guerra aberta com a Rússia e com a França e, para chegar rápido a Paris, invadiu a Bélgica que era neutral. A Grã-Bretanha que teria com prazer deixado as armas, diante de uma tão flagrante violação do direito internacional, não pôde deixar de fazer a sua parte".

Perguntado sobre o motivo da Itália não ter entrado na guerra, Del Boca, disse que "a Itália não foi capaz de perceber o que estava acontecendo. Nas frentes europeias já estava claro que a guerra seria longa, cansativa, massacrante e inconclusiva. No entanto, após a declaração de neutralidade, que teria tirado o país dos problemas e lhe teria economizado um milhão e meio de vítimas entre mortos e mutilados, optou por participar da guerra girando 180 graus a aliança. Da Tríplice Aliança com a Alemanha e a Áustria para a França e a Inglaterra".

"A Itália não estava em condições de entrar em campo", acrescenta. "O seu exército foi reduzido a um mínimo. Os armazéns militares estavam vazios totalmente e não tinham nada. Tratava-se de mobilizar um milhão de recrutas, mas o estado maior estava nas condições de equipar decentemente só 700.000. E  200.000 não tinham nem mesmo uniforme. A artilharia não existia porque os canhões eram de ferro-velho. Um consórcio industrial composto por 27 empresas que tinham tomado a responsabilidade de produzir o canhão de 75 milímetros mostrou-se solícito só no distribuir lucros e subornos a membros de mais prestígio. As entregas começaram em meados de 1915, quando a guerra já tinha começado há muito tempo. Quanto as metralhadoras, no momento da declaração de guerra, não havia nada e decidiu-se por ordenar às pressas uma série de secções de metralhadoras, recorrendo à Fiat que já havia sido rejeitada pela confiabilidade insuficiente do produto".

"Ir à guerra naquelas condições - disse o jornalista - que foi uma escolha criminosa que deve ser dividida igualmente entre os militares cheios de estrelas mas com pouca inteligência e políticos de pouca astúcia mas com ambições ridículas. Para justificar a entrada na guerra a propaganda do governo usou o escudo da questão de Trento e Trieste, mas a maior parte da elite do Trieste podia considerar-se italiana linguisticamente, não por etnia".

Muitos dos "não redimidos" e dos "nacionalistas" mais fervorosos eram descendentes de linhagens não-latinas: "Eram gregos, albaneses, judeus, arménios que falavam italiano, mas não se sentiam italianos o suficiente para combater a Áustria. Assim, diante de quase 4 mil Trentinos e Friulinos que desertaram do exército austríaco para colocar-se à disposição das tropas italianas, conta-se 52 mil dos seus compatriotas que vestiram o uniforme cinza-azul do Habsburg e lutaram até o fim, mesmo contra os italianos".

Mas é verdade que a Santa Sé tentou de todas as formas evitar a guerra? Sobre este ponto, Del Boca não tem dúvidas e diz: "A Igreja tentou todas as maneiras para evitar o confronto entre os países europeus. Em vão. Além disso, como pode ser ouvida uma palavra de mediação pacata se, ao redor, a multidão grita? O barulho de muitos cobre a voz solitária".

"Pio X morreu subitamente na noite de 20 de Agosto de 1914. Não sofria de doenças graves. O informe apontou que era pneumonia. Também o sucessor, oito anos mais tarde, teve o mesmo destino: Pneumonia fulminante".

O conclave se reuniu, em seguida, em Setembro, em um clima "já influenciado pelos horrores da guerra". "Os cardeais estrangeiros pareciam mais dedicados aos interesses da guerra de seus próprios países do que à causa cristã. Parecia que a escolha do novo Papa deveria recompensar o Secretário de Estado Merry del Val. Mas então apareceu o nome de Giacomo Della Chiesa. O cardeal alemão Felix Hartmann fez uma declaração pública na qual afirmava que o candidato abrigava preconceitos anti-alemão. Mas os austríacos votaram em bloco".

A primeira ação do novo Papa - lembra Del Boca – foi a de "tactear uma mediação para manter a Itália fora do conflito. Roma queria concessões territoriais para o leste e o Vaticano, através dos canais diplomáticos apropriados, se preocupou em contactar os vértices políticos e militares de Viena implorando-lhes para condescender com todos os pedidos".

Provavelmente, já era tarde demais: "A Áustria desconfiava dos italianos que diziam uma coisa, e pensavam outra e faziam uma terceira. A Itália, por sua vez, tinha assumido compromissos com a metade do mundo e não podia mais segurar".

A Santa Sé e o Estado italiano se falaram com a mediação do embaixador, o barão Monti. "O processo não foi transparente, colocado em um trilho subterrâneo, que era afectado pela atitude atitude liberal-maçónica do governo. Os resultados deste ponto de vista, acabaram com um balanço incerto".

Muitos, ainda hoje, se perguntam por que o Papa Bento XV não conseguiu impedir que a Itália entrasse na guerra. "O ministro das Relações Exteriores Sidney Sonnino rejeitou o convite da Igreja - diz o autor – a qual pediu para ratificar uma troca de prisioneiros entre a Itália e a Áustria. Eram uns 250 mil e, pelo menos, 50 mil estavam doentes com tuberculose por causa do frio e da desnutrição. Tal acordo não era novo, já tinha sido realizado entre a França e a Alemanha. O governo italiano se opôs definitivamente em maio de 1918, com o novo presidente Vittorio Emanuele Orlando, que justificou a Decisão: "os franceses e os alemães são soldados melhores que os nossos. Os nossos são menos resistentes, mais impressionáveis e mais cansados da guerra. Se virem que, facilmente, os prisioneiros são devolvidos, há razão para acreditar que eles prefeririam dar-se como  prisioneiros em vez de expor suas vidas'".

A guerra faz de todo crime uma necessidade. De Bento XV passou para a história o seu pedido veemente de encontrar soluções políticas para o conflito suspendendo o "massacre inútil". "Este apelo antecipa uma cultura eclesiástica que não foi mais abandonada", diz o escritor, ressaltando que todos os Papas, “João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e agora papa Francisco, diante até mesmo de conflitos distantes exortaram os adversários com um: ‘Parem!’”

Bento XV, no entanto, foi mal interpretado. "A crítica - conclui Lorenzo Del Boca - acusou a sua pregação de inspirar-se em uma atitude pró-austríaca, enquanto as Potências Centrais, pelo contrário, suspeitaram que o pedido se destinava a favorecer os adversários. Os italianos do povo -. camponeses e trabalhadores que foram para a frente para morrer – se solidarizaram com o Pontífice. O general Cadorna e o alto escalão do Estado maior tomaram distâncias. Para eles se tratava de 'derrotismo' destinado a criar ressentimento entre as tropas e a diminuir o espírito bélico do povo em armas". 

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