Prioridade absoluta à evangelização, possibilidade de os leigos e as mulheres serem responsáveis dos dicastérios, mandatos limitados a cinco anos só excepcionalmente renováveis, redução do número de dicastérios, uma lógica de funcionamento centrada no serviço à Igreja universal e ao mundo, na comunhão, na sinodalidade, na colaboração mútua e na proximidade com os que mais sofrem. São estas algumas das principais mudanças estabelecidas na constituição apostólica Praedicate evangelium (“Anunciai o Evangelho”), “sobre a Cúria Romana e o seu serviço à Igreja e ao Mundo”, publicada neste sábado, 19 de Março e que entrará em vigor dia 5 de Junho, festa de Pentecostes no calendário católico.
Consubstanciando muito do que tem sido a visão do Papa sobre a organização e a missão da Igreja Católica, preparada durante vários anos, a publicação da Praedicate evangelium (PE) chegou a estar prevista para 2019, quando vieram a público algumas das suas principais orientações, como o 7MARGENS na altura adiantou.
No entanto, ela foi sendo adiada, quer por causa da pandemia, quer para clarificar normas que poderiam colidir com o Direito Canónico. A sua divulgação acaba por coincidir com o nono aniversário do início do pontificado do Papa Francisco e aponta a necessidade de os membros da Cúria terem um conjunto de características espirituais que ultrapassem a dimensão tecnocrática e institucional que muitas vezes tinham.
O título e subtítulo resumem o programa e o conteúdo da constituição e coincidem com o que há três anos se soube: a Cúria Romana deve estar ao serviço primordial da evangelização e não da burocracia papal. É o que se afirma logo no início do texto: “Anunciai o Evangelho: esta é a tarefa que o Senhor Jesus confiou aos seus discípulos. Este mandato constitui o primeiro serviço que a Igreja pode prestar a cada pessoa e a toda a humanidade no mundo de hoje.”
“A reforma da Cúria Romana situa-se também no contexto da natureza missionária da Igreja”, acrescenta o texto, que confirma a prioridade à missão evangelizadora da Igreja, quando refere o novo Dicastério para a Evangelização: este é presidido directamente pelo próprio Papa e, na lista dos dicastérios – o nome que passam a ter todos os principais organismos da Santa Sé, substituindo as actuais congregações e conselhos pontifícios – ele vem antes do Dicastério para a Doutrina da Fé. Apesar de o documento estabelecer que todos têm o mesmo estatuto, percebe-se também aí a mudança de prioridade.
Excepção à mudança de nome é a Secretaria de Estado, que é definida como “secretaria papal” com a função de coadjuvar de perto o Papa, no exercício da sua missão. De resto, reduz-se o número de Dicastérios, “juntando aqueles cuja finalidade era muito semelhante ou complementar”, para “evitar sobreposições de competências”. Um dos casos de fusão é o novo Dicastério para a Cultura e a Educação.
Comunhão, sinodalidade, serviço
A reforma, clarifica o texto, “não é um fim em si mesma, mas um meio para dar um forte testemunho cristão; para fomentar uma evangelização mais eficaz; para promover um espírito ecuménico mais frutuoso; para fomentar um diálogo mais construtivo com todos”.
Comunhão, sinodalidade, serviço, são palavras-chave da nova Constituição, que, entendendo a Cúria como estando “ao serviço do Papa”, não a vê como algo “entre o Papa e os bispos, mas antes se coloca ao serviço de ambos”. Aliás, logo a seguir, o documento confirma, no seu parágrafo 9, que a atenção dada às conferências episcopais se destina a “aproveitar ao máximo o seu potencial”, com a Cúria ao “pleno serviço” dos organismos colectivos dos bispos, de modo a “exprimir a dimensão colegial do ministério episcopal” e “a reforçar a comunhão eclesial”.
“Esta vida de comunhão dá à Igreja a face da sinodalidade”, afirma o texto, referindo uma questão que aparece cada vez mais decisiva no pontificado de Francisco. Também o papel dos leigos é sublinhado pelo documento, que o considera “imprescindível”, incluindo em lugares de governo: “O Papa, os bispos e outros ministros ordenados não são os únicos evangelizadores na Igreja. (…) Cada cristão, em virtude do baptismo, é um discípulo-missionário na medida em que encontrou o amor de Deus em Cristo Jesus.” Por isso a reforma da Cúria deve “prever o envolvimento de leigos, também em papéis de governo e de responsabilidade”.
O texto da PE refere ainda que o se estabelece na nova Constituição “será real e possível se brotar de uma reforma interior” com a qual se expresse a atitude do samaritano da parábola, “que se desvia do seu caminho para se tornar próximo de um homem meio-morto que não pertence ao seu povo e que ele nem sequer conhece”.
A Cúria Romana passa a ser composta pela Secretaria de Estado, 16 dicastérios, três organismos de justiça, seis organismos económicos, três departamentos, um registo de advogados e nove instituições ligadas à Santa Sé (entre as quais o Arquivo e a Biblioteca apostólicos, actualmente dirigidos pelo cardeal português José Tolentino Mendonça).
O novo Dicastério para o Serviço da Caridade que aparece em terceiro lugar na lista, toma a experiência da Esmolaria Apostólica: “Partindo da opção pelos pobres, os vulneráveis e os excluídos, exerce em qualquer parte do mundo a obra de assistência e ajuda-os em nome do Romano Pontífice, o qual, nos casos de particular indigência ou de outra necessidade, disponibiliza pessoalmente as ajudas a serem destinadas”, diz o texto.
Já o Dicastério para a Doutrina da Fé passa a englobar Comissão para a Proteção de Menores, criada em 2013, que continuará a trabalhar com autonomia, incluindo presidente e secretário nomeados pelo Papa.
Mandatos de cinco anos
O documento – que só nesta segunda-feira, 21, deverá ficar disponível na página oficial do Vaticano na internet, depois da sua apresentação pública na Sala de Imprensa do Vaticano –, estabelece mandatos de cinco anos e propõe um espírito de uma “saudável descentralização” deixando aos bispos a tarefa de resolver todas as questões que não impliquem a “doutrina, disciplina e comunhão da Igreja”.
Não se ficando apenas por um conjunto de normas e critérios organizativos, o documento propõe ainda “que em todas as instituições curiais o serviço à Igreja-mistério” se traduza “na oração comum, na renovação espiritual e na celebração periódica comum da eucaristia e na “alegre consciência” de todos os membros da Cúria de que são “discípulos-missionários ao serviço de todo o Povo de Deus”.
Ao mesmo tempo, a Constituição refere a necessidade de prestar “uma cuidadosa atenção à escolha e formação do pessoal, bem como à organização do trabalho e ao crescimento pessoal e profissional de cada indivíduo”. Além da “integridade pessoal e profissionalismo” dos membros da Cúria, estes devem também distinguir-se “pela sua vida espiritual, boa experiência pastoral, sobriedade de vida e amor pelos pobres, espírito de comunhão e serviço, competência nas matérias que lhes são confiadas e capacidade de discernir os sinais dos tempos”, já que “o rosto de Cristo reflecte-se na variedade dos rostos dos seus discípulos que, pelos seus carismas, estão ao serviço da missão da Igreja”, sejam eles bispos, clérigos ou leigos.
A escolha de cardeais, bispos e outros membros da Cúria deve igualmente reflectir a “catolicidade da Igreja”, devendo a Cúria Romana contar com “colaboradores qualificados de diferentes culturas”.
A nova Constituição substitui a Pastor bonus (“O bom pastor”), promulgada pelo Papa João Paulo II em 1988, e que actualizava a estrutura criada pelo Papa Sisto V precisamente 400 anos antes. Desejada pelos cardeais nas reuniões pré-conclave de 2013, ela surge agora como resultado das discussões no Conselho de Cardeais e de múltiplos contributos.
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