Quando foi eleito “Patriarca de Moscovo e de Todas as Rússias”, no princípio de 2009, Cirilo era tido por reformador, enquanto o seu contendor mais direto, o metropolita Clemente, era considerado o continuador da velha tradição de uma Igreja Ortodoxa subserviente relativamente ao Estado.
De facto, enquanto hierarca responsável pela comunicação e relações externas do Patriarcado, junto do seu antecessor, Alexis II, era figura mediática, bem-falante, conhecedor do mundo ocidental. Nos primeiros anos no cargo, procurou modernizar a Igreja Ortodoxa, trazendo-a para o centro da própria vida política. Mas esse percurso foi-se alterando e, como observava, em 2017, o jornal The Moscow Times, ele tinha passado “de reformador ambicioso a linha-dura do Estado”.
A guerra desencadeada por Putin na Ucrânia veio pôr em evidência um líder religioso não apenas apoiante e legitimador da invasão, mas a justificá-la como uma guerra contra o Ocidente, “contra as forças do mal”, “um combate que não tem um significado físico, mas metafísico”, como referiu em homilias e discursos já depois de iniciada a invasão.
À medida que se revelava a dimensão e crueldade da catástrofe provocada pelos ataques indiscriminados contra alvos civis, em verdadeira política de terra queimada, o clamor que se levantou em muitos setores da opinião pública internacional acabou por interpelar vigorosamente as diversas religiões, a começar pelas igrejas ortodoxas, maioritárias no país invadido.
Patriarcado de Moscovo cada vez mais isolado
No interior da Ucrânia, a ortodoxia está dividida há muitos anos. A Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev, reconhecida pelo Patriarca Bartolomeu de Constantinopla a partir de 2019, desde o início que condenou de forma veemente a invasão russa. A Igreja Ortodoxa ligada a Cirilo, depois de um primeiro momento de hesitação, seguiu a mesma via.
Como o 7MARGENS vem noticiando, também noutros países têm sido numerosas as tomadas de posição das igrejas, contra a guerra e de pressão para que Cirilo deixe de dar cobertura ao desastre humanitário que se tem vindo a abater sobre o povo ucraniano.
Conferências episcopais de vários países (casos da Alemanha e da França, por exemplo), bem como a estrutura representativa das conferências episcopais da Europa dirigiram, mensagens ao Patriarca de Moscovo, tendo, até agora, deparado com o silêncio ou com respostas evasivas.
O próprio Papa Francisco, que se tem multiplicado em gestos e iniciativas pautadas pela urgência de parar a guerra e enveredar pela via negocial, falou à distância com Cirilo, num diálogo classificado como “difícil e doloroso”. Os dois líderes que, nos últimos anos, vinham fazendo um percurso de aproximação e de diálogo, parecem encontrar-se em posições de afastamento, ainda que o porta-voz de Cirilo tenha dito, nos últimos dias, que o encontro entre os dois poderia acontecer ainda este ano.
Neste momento, o Patriarca de Moscovo e a Igreja Ortodoxa Russa parecem estar cada vez mais isolados, a ponto de largos setores da ortodoxia terem deixado de evocar o nome de Cirilo nas orações litúrgicas e, em alguns casos, começarem mesmo a colocar sobre a mesa o tema da sua destituição.
“As bombas, as inúmeras mortes, a destruição e o rio de refugiados destruíram, na Ucrânia, todo o respeito pelo Patriarca de Moscovo, que se fundiu com a posição de Putin”, escreve Lorenzo Prezzi no jornal Settimana News, de Itália, reproduzido pelo IHU-Unisinos.
Um tal passo, que é considerado por ora improvável, só poderia acontecer mediante diligências conduzidas pelo Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu. O teólogo ortodoxo francês Jean-François Colosimo, citado na peça do Settimana News, não hesita em pedir a destituição do Patriarca: “Está no direito do trono de Constantinopla, a quem compete o exercício da primazia (…) de reunir os responsáveis das Igrejas locais, fortemente prejudicadas por Cirilo, para depô-lo, num ato colegial. Ou seja, destituí-lo, praticando uma excomunhão que ele mesmo provocou.”
“É inútil procurar, como fazem alguns comentadores, os czares da Rússia; houve uma verdadeira cisão totalitária, que se chamou União Soviética. Estamos diante de uma tentativa de reconstrução imperial do tipo comunista”, escreve o mesmo Colosimo, num texto publicado no Réforme, sintomaticamente intitulado “Putin e Cirilo são fantasmas do estalinismo”(*).
Entretanto, as posições do Patriarca de Moscovo estão a provocar ondas de choque também entre membros do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), os quais consideram que elas atentam contra a organização e deveriam, por isso, conduzir à expulsão de Cirilo e da Igreja Ortodoxa Russa daquele Conselho.
O secretário-geral do CMI, Ioan Sauca, ele próprio ortodoxo, romeno, foi um dos líderes religiosos que, a par do Papa e do Patriarca Bartolomeu, apelaram a Cirilo para persuadir Putin a parar a guerra. A resistência, num ponto tão crítico como é a luta pela paz, é considerada como atentado à missão do Conselho Mundial das Igrejas, de “promover a unidade, a paz e a justiça cristãs”.
Cirilo acusa Ocidente e Constantinopla
Numa rara resposta aos apelos recebidos, Cirilo dirigiu-se a Ioan Sauca, numa mensagem datada de 10 de março, afirmando ser sua “firme convicção” que “este conflito não começou hoje” e que “os seus iniciadores não são os povos da Rússia e da Ucrânia, que vieram da mesma pia batismal de Kiev, estão unidos por uma fé comum, santos e orações comuns e partilham um destino histórico comum”. “As origens do confronto estão nas relações entre o Ocidente e a Rússia”, acrescentou.
E juntou, ao rol dos que considera “responsáveis”, o Patriarca Bartolomeu de Constantinopla, por ter concedido às igrejas ortodoxas ucranianas independência de Moscovo”, o que considera constituir um “cisma”.
Segundo escreve Rob Schenck, esta segunda-feira, 28, no Religion News Service, o conhecimento desta resposta vinda de Moscovo fez levantar, de imediato, cerca de uma centena de personalidades de várias denominações cristãs dos Estados Unidos da América, entre responsáveis executivos institucionais, académicos e influenciadores sociais, os quais dirigiram uma carta a Cirilo, em que imploram que o hierarca “use a sua voz e profunda influência para pedir o fim das hostilidades e da guerra na Ucrânia”, intervindo nesse sentido junto das autoridades.
Entre outras posições significativas, 233 clérigos da própria Igreja Russa e mais de meio milhar de teólogos, académicos e outros investigadores, incluindo nomes proeminentes da ortodoxia, publicaram documentos criticando as posições do Patriarca e condenando, como anti-evangélicos, os argumentos do “mundo russo” e da doutrina nacionalista seguida por algumas igrejas ortodoxas.
Mas há quem não se contente com mais súplicas e entenda que se deve passar a uma ação mais ‘musculada’. Rob Schenck, que, além de bispo da Igreja Evangélica Metodista dos EUA, é também presidente do Instituto Dietrich Bonhoeffer, em Washington, refere, no seu artigo, o caso de um proeminente teólogo checo e porta-voz protestante ecuménico, Pavel Černý, que viveu a invasão soviética do seu país em 1968, quando ainda era estudante universitário, e que foi bastante mais contundente na sua posição. Num texto vindo a lume na última semana em várias publicações europeias e norte-americanas, Černý sustenta que “a Igreja Ortodoxa Russa é cúmplice da guerra contra a Ucrânia”, pelo que “não deveria ser autorizada a continuar como membro do CMI enquanto não se afastar desse falso caminho de nacionalismo religioso”.
O Instituto Dietrich Bonhoeffer, por sua vez, lançou uma petição digital para que as organizações religiosas atuem no sentido de remover o Patriarcado de Moscovo do Conselho Mundial das Igrejas, argumentando que Cirilo “deve ser responsabilizado pela sua brutal e anticristã violação dos direitos humanos”.
(*) Para uma leitura da ligação entre Cirilo e Putin, perspetivada historicamente, veja-se esta entrevista com Jean-François Colosimo:
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