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sexta-feira, 25 de março de 2022

“Perdemos a humanidade, malbaratámos a paz”, dirá o Papa no “acto de consagração”

"solidariedade mediatizada"

 | 24 Mar 2022

Papa Francisco, Fátima,

Mensagem do Papa Francisco para os peregrinos em Fátima, 13 de Maio de 2021. Foto © Santuário de Fátima.


“Perdemos a humanidade, malbaratámos a paz.“ Será com estas palavras que o Papa Francisco fará esta tarde, a partir das 16h de Lisboa, o “acto de consagração” da humanidade e em especial da Ucrânia e da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Será numa frase em que invocará de forma especial a protecção maternal da figura da mãe de Jesus: “Hoje esgotámos o vinho da esperança, desvaneceu-se a alegria, diluiu-se a fraternidade. (…) Tornámo-nos capazes de toda a violência e destruição. Temos necessidade urgente da vossa intervenção materna.” A cerimónia será transmitida nos canais vídeo do Santuário de Fátima e do Vaticano.

O acto consiste, afinal, numa oração, que assume um carácter especial. Desde logo por ser presidida pelo Papa no Vaticano, mas também por ser feita em Fátima ao mesmo tempo, numa celebração que será presidida pelo cardeal polaco Konrad Krajewski, esmoler pontifício, que desde o início da guerra já esteve duas vezes na Ucrânia. O carácter simbolicamente importante deste acto completa-se com o facto de Francisco ter convidado todos os bispos do mundo a que fizessem o mesmo acto, com ele, à mesma hora, nas suas dioceses.

“Descuidámos os compromissos assumidos como Comunidade das Nações e estamos a atraiçoar os sonhos de paz dos povos e as esperanças dos jovens”, dirá o Papa, antes de referir várias invocações tradicionais de Maria de Nazaré, acrescentando uma frase a propósito da guerra e pedindo que o mundo seja preservado da “ameaça nuclear”: “Vós, estrela do mar, não nos deixeis naufragar na tempestade da guerra; Vós, arca da nova aliança, inspirai projetos e caminhos de reconciliação; Vós, ‘terra do Céu’, trazei de volta ao mundo a concórdia de Deus (…) Rainha do Rosário, despertai em nós a necessidade de rezar e amar; Rainha da família humana, mostrai aos povos o caminho da fraternidade; Rainha da paz, alcançai a paz para o mundo.”

“Perdemos o caminho da paz. Esquecemos a lição das tragédias do século passado, o sacrifício de milhões de mortos nas guerras mundiais”, dirá ainda o Papa, para fazer também um diagnóstico duro: “Adoecemos de ganância, fechamo-nos em interesses nacionalistas, deixamo-nos ressequir pela indiferença e paralisar pelo egoísmo. Preferimos ignorar Deus, conviver com as nossas falsidades, alimentar a agressividade, suprimir vidas e acumular armas, esquecendo-nos que somos guardiões do nosso próximo e da própria casa comum. Dilaceramos com a guerra o jardim da Terra, ferimos com o pecado o coração do nosso Pai, que nos quer irmãos e irmãs. Tornamo-nos indiferentes a todos e a tudo, exceto a nós mesmos. E, com vergonha, dizemos: perdoai-nos, Senhor!

Irmã Lúcia marca a agenda dos papas

Irmã Lúcia e João Paulo II. Foto © Jornal O Bom Católico, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons

Irmã Lúcia e João Paulo II. Foto © Jornal O Bom Católico, CC BY 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by/2.0>, via Wikimedia Commons

Mas o que é, afinal, um acto de consagração ao Imaculado Coração de Maria? Esta é uma das múltiplas invocações da figura da mãe de Jesus, na sua dimensão maternal. Mas foi a irmã Lúcia dos Santos, a principal vidente de Fátima, que inspirou já vários actos de consagração – da Rússia e da humanidade – ao Imaculado Coração de Maria.

Nos relatos que fez dos acontecimentos de 1917, Lúcia apenas se refere à necessidade de uma tal consagração a partir de 1929, nas visões que teve quando estava em Tuy (Galiza, Espanha). Para evitar que o mundo vivesse outra calamidade como a da Grande Guerra 1914-18, deveria ser feito esse acto. Essa exigência, acrescentava ela, tinha sido feita em 13 de Julho de 1917, de acordo com o seu relato, nas visões que ela protagonizara, acompanhada pelos primos.

Seguindo as indicações de Lúcia, os bispos portugueses começam por fazer um acto de entrega em 1931 e, depois, de novo em 1938. Mas será o Papa Pio XII a inaugurar em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, o carácter universal do gesto, consagrando o género humano ao Coração de Maria, embora sem mencionar a Rússia. Seria ainda a vidente de Fátima a marcar a agenda dos papas mais três vezes: em 1965, no final do Concílio Vaticano II, Paulo VI preside a idêntico acto com todos os bispos do mundo reunidos em Roma; em 1982, João Paulo II repete o gesto.

O problema é que Lúcia considerava que até aí a consagração não cumprira os requisitos exigidos pela visão. Por isso, em 1984, depois de trocas de cartas entre Lúcia e o Papa polaco, este decide renovar o gesto. Para tal, pediu que fosse enviada para Roma a imagem de Fátima e solicitou aos bispos do mundo inteiro que se juntassem a ele, na mesma ocasião. Só depois desta cerimónia Lúcia considerou que o acto estava completo, mas vários grupos integristas católicos continuam a dizer que o que os sucessivos papas fizeram não cumpriu os pedidos de Nossa Senhora. Lúcia entendia, aliás, que a consagração de 1984 teria sido um acto antecipatório da queda do regime soviético e do comunismo, diz José Rui Teixeira, investigador da Universidade Católica Portuguesa e autor da biografia da Irmã Lúcia no âmbito do seu processo de beatificação e canonização.

“Lúcia viveu muito o drama do ateísmo”, diz ao 7MARGENS José Rui Teixeira. E é nessa perspectiva que o teólogo lê as referências de Lúcia ao comunismo e à Rússia (então, a nação líder da União Soviética, da qual também fez parte a Ucrânia).

José Rui Teixeira considera que, com o acto de hoje, a própria Igreja não escapa à “solidariedade mediatizada”: “Estamos muito afectados pelo âmbito da mediatização do tempo e do espaço e esta guerra atinge-nos de forma mais intensa porque está mais perto de nós do que outras”. Por isso vemos multiplicarem-se iniciativas de pessoas que vão buscar ucranianos ou que se mobilizam para reunir bens para enviar para a Ucrânia. “Isto traduz a mais profunda solidariedade mediatizada e a própria Igreja sente necessidade de entrar nesta lógica e não consegue escapar” a ela.




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