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domingo, 3 de março de 2019

De Versalhes ao Eliseu

O conflito que muitos pensavam seria breve, já dura mais de quatro anos. É 8 de novembro de 1918 e um trem francês, utilizado como escritório pelo Marechal Foch, encontra-se estacionado num ramal ferroviário na floresta de Compiègne. Quatro representantes alemães, conduzidos por outro trem, apresentam-se diante de Weygand e Foch para escutar as condições para assinatura do armistício: recuar para a margem direita do Reno, entregar toda a frota e boa parte das armas. Ezberger, secretário de Estado, mostra-se indignado enquanto o capitão de navio Von Vanselow chora. Três dias depois retornam ao vagão e assinam.

O resto da história deste vagão é pouco conhecido: foi exposto como troféu nos Invalides, em Paris, recolocado na floresta e protegido em um museu. Em 1940 Hitler vai ao local e determina que o vagão seja recolocado nos trilhos, para que os franceses provassem da mesma amargura, experimentassem a mesma humilhação e nele assinassem sua rendição. Levado a Berlim como troféu, foi queimado ao final da conflagração europeia para que os franceses não o recuperassem. Mas a história ainda não terminara. O desvario humano pode ser de tal ordem que os corrimãos do vagão, que se salvaram do fogo, encontram-se num museu que foi reconstruído na floresta. Qualquer semelhança com imagens que possamos supor nas refregas entre bárbaros, nas estepes do  mundo, não é mera coincidência.

Quando nos perguntamos como um conflito das proporções da Primeira Guerra Mundial pode ter acontecido, aventam-se razões remotas, embaladas por visões parciais, sem que se encontre respostas definitivas. Buscando entender as consequências do conflito, busquei abrigo nas páginas de “O Tratado de Versalhes”, de Jean-Jacques Becker, que detalha como os aliados rearranjaram o mapa geopolítico a partir de 1918, comutando populações e áreas entre vários países, de certa forma dando continuidade a intermináveis padecimentos.

Os vencedores, dominados por interesses e sede de vingança - depois de longas, dissonantes e arrastadas discussões,- cometeram algumas barbaridades, desrespeitando o assentamento de populações inteiras e o decantado princípio da autodeterminação dos povos.

Certos acontecimentos na história da humanidade assemelham-se ao desastre de remover uma das latas de uma pilha. Uma lata da base da pirâmide. O curioso foi a causa imediata da guerra. Um desconhecido da “Mão Negra”, uma conspiração sérvia, destes que se pode encontrar em meio aos revoltados na sociedade, Gavrilo Princip, ao assassinar o arquiduque Francisco Ferdinando e Sofia, sua esposa, numa esquina de Sarajevo, deflagraria uma carnificina que sepultou a razão. Olhar a Europa antes e depois do conflito de pronto revela o que aconteceu com a pilha de latas. Foram riscados do mapa quatro impérios e surgiram países como Polônia, Letônia, Lituânia, Estônia e Tchecoslováquia.

O autor enfatiza algumas ideias dos franceses, como dividir a Alemanha ou recuar seu território para a margem direita do Reno. Na prática o castigo imposto ao perdedor resultou em “uma série de medidas econômicas, coloniais, militares, navais, e cada uma delas feria plenamente o espírito alemão e, inicialmente, transformavam a Alemanha em potência de segunda ordem”. Uma das metas primordiais era destruir sua força militar. Em 1919, na base britânica de Scapa Flow, navios alemães foram afundados, contrariando o desejo da França de reaproveitá-los.

Para que se tenha ideia da confusa Conferência de Paz, em 1918 o presidente norte-americano, Woodrow Wilson, fez uma proposta bizarra: “Durante muito tempo, dediquei-me com afinco ao problema turco e cheguei à conclusão que a única solução possível é expulsar os turcos de Constantinopla”. Claro está que não pretendia refundar o Império Bizantino ... O Tratado de Versalhes, assinado no Salão dos Espelhos, jamais ratificado pelo Senado norte-americano, fracassou. De certa forma até mesmo os que ainda não haviam nascido embarcaram naquele vagão na floresta de Compiègne. O ovo da serpente do nazismo seria chocado na estufa deste tratado e o resto é bem conhecido. As feridas abertas entre Alemanha e França só começariam a cicatrizar em 1962, quando De Gaulle, em Bonn, discursou em alemão, idioma que aprendera como prisioneiro na primeira guerra. Em 1963, ele e Adenauer assinariam o Tratado do Eliseu, reconciliando os dois países. Os homens aprendem, ainda que a duras penas.

J. B. Teixeira



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