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sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Regressar à essência de uma “humanidade partilhada”



 Comunidades compassivas, parceiras para a saúde 

Começam a surgir cada vez mais comunidades compassivas. Estas são projectos de intervenção comunitários que estabelecem redes de cuidados entre todos os sectores da comunidade para acompanhar as pessoas envolvidas em processos de doença crónica incapacitante, em final de vida, perda e luto. São parceiros importantes na prestação de cuidados de saúde. Borba é das primeiras comunidades compassivas nacionais.

Como médicas de Medicina Geral e Familiar (MGF), contactamos diariamente com a problemática dos doentes em fim-de-vida, suas famílias e cuidadores.

O progresso da Medicina, com cada vez melhor acuidade diagnóstica e possibilidades terapêuticas, levou ao aumento de doenças crónicas incapacitantes. O envelhecimento da população no nosso país é uma realidade que tem como consequência maior dependência. Para além disto, assistimos ao desaparecimento das redes tradicionais de cuidados, que leva ao isolamento social, cada vez mais frequente. Antigamente era comum que os idosos contassem com pelo menos um filho mais próximo, que ficava a residir na casa de seus pais, e os apoiava. Hoje em dia é frequente ver que os filhos constituem família e vão para outras cidades. Quando optam por ficar na terra de origem, vivem em casa própria, restando-lhes algum tempo, pontualmente, para apoiar o pai ou mãe, uma vez que têm a sua ocupação laboral.

O cuidador informal, é muitas vezes o próprio cônjuge, também ele idoso e com as suas limitações, que tenta estar disponível as 24 horas do dia para cuidar. A exaustão do cuidador é uma realidade para a qual temos de estar atentos. E não podemos esperar que esta problemática seja apenas da esfera dos cuidados de saúde. Torna-se necessário procurar uma resposta comunitária. Contar com a comunidade como recurso para a saúde permite resgatar as competências da sociedade e autonomia da comunidade no auxílio aos seus próprios elementos, colocando-a como parceiro na complexa tarefa de assegurar cuidados de saúde em doentes em fim de vida, suas famílias e cuidadores.

Qualquer gesto que possa fazer para ajudar, mesmo que simples ou pontual, pode marcar a diferença na vida de outra pessoa. Imagine ir comprar pão ao seu vizinho, idoso, com dificuldades na locomoção, a quem é muito penoso descer as escadas e atravessar o quarteirão para chegar à padaria. Naquele dia, o seu vizinho poderia ter pão na mesa.

Em Borba, onde trabalhamos como médicas de família, está a crescer um projecto comunitário, à luz de exemplos bem sedimentados em outros países do mundo: uma Comunidade Compassiva. A Public Health Palliative Care International define uma comunidade compassiva como uma iniciativa de desenvolvimento comunitária associada a cuidados paliativos globais, consistindo em grupos de vizinhos próximos que se juntam para organizar formas de auxiliar as pessoas da sua área de residência que vivem com doença terminal, seus cuidadores e situações de luto ou perda.1 Assume-se, portanto, que a morte, o morrer, a perda e o cuidar são responsabilidade de todos.

Uma comunidade compassiva no final da vida permite que nos últimos tempos do doente, sua família e cuidadores sejam mais resilientes, menos exaustos e possam proporcionar mais qualidade de vida ao seu familiar no domicílio, com o auxílio da comunidade e o apoio dos Cuidados Paliativos. Assim, é possível cuidar no domicílio até ao final da vida com qualidade. É importante constituir uma rede de cuidados que possa dar suporte ao doente e à sua família, quer através de cuidados directos ao doente, como alimentá-lo, por exemplo, ou cuidados indirectos, que permitem o descanso ou desocupação momentânea de seus cuidadores.

Algumas tarefas que ilustram o tipo de acção da comunidade são: passar algum tempo com o doente, lendo um livro ou conversando, tocando música, jardinar, ir passear o animal de estimação, fazer as compras, fazer o acompanhamento às consultas, entre outros. A ideia é criar uma rede de suporte externa que apoie a rede de elementos que prestam cuidados directos ao mesmo, sendo estes últimos frequentemente a família que vive com o doente.

Seria interessante perguntar a Darwin se ao animal Homem basta ser o mais bem-adaptado ao ambiente, ou se podemos acrescentar uma variável à sua teoria: a compaixão presente na comunidade. A hipótese que se coloca, é que sobrevive mais (e melhor) a pessoa integrada na comunidade com mais compaixão. Porque a motivação que está na base das Comunidades Compassivas é a compaixão. Sobre este atributo interessa ler a Carta da Compaixão, impulsionada por Karen Armstrong, vencedora de TED Prize 2008.2,3 Transcendendo as fronteiras políticas, dogmáticas, religiosas, ideológicas, e baseada na nossa interdependência enquanto humanos, a compaixão é essencial para as relações humanas, chamando-nos a tratar dos outros como queríamos que nos tratassem a nós. É a força motriz para trabalharmos incansavelmente para aliviar o sofrimento do outro, de sair do centro do nosso mundo e colocar o outro nesse lugar, e tratar todos os seres humanos com justiça, equidade e respeito. Inspiradas na Carta da Compaixão, as Comunidades Compassivas podem abordar outras problemáticas para além da saúde, conforme as necessidades particulares de cada comunidade, que sejam por ela reconhecidas como causadoras de sofrimento.

A Associação Borba Contigo Cidade Compassiva (ABCCC) é uma organização sem fins lucrativos, composta por cidadãos borbenses e por uma médica da USF Quinta da Prata e da ECSCP Ametista – pólo de Estremoz. O seu caminho tem sido feito inicialmente através da sensibilização da população sobre a necessidade de cuidar em fim de vida, trabalhando as concepções de morte e do morrer, para que deixe de ser um tema tabu. Têm sido criadas iniciativas que promovem a reflexão sobre este aspecto da vida, como sendo um processo normal, e expectável para todos os seres humanos, desmistificando a ideia de que seja apenas da esfera médica. Trabalhar estes aspectos conduz as pessoas a enquadrar a sua motivação e preparação para prestar cuidados, atenção e tempo às pessoas nestas situações. A fase seguinte será a capacitação dos cuidadores. Por fim, será feita a criação de redes de cuidados entre todos os sectores da sociedade, para assim garantir o cuidado integral da pessoa com doença grave avançada ou mesmo no final da vida.

É com muito entusiasmo que vemos crescer a ABCCC, contribuindo para impulsionar Borba a regressar à essência de uma “humanidade partilhada”.






Sílvia Corrales Villar 

e Rita Eusébio Freitas

Médicas de Medicina Geral

e Familiar


 

Bibliografia:

1- http://phpci.info/become-compassionate-cities

2- Charter for Compassion, disponível em: https://charterforcompassion.org/images/menus/charter/pdfs/CharterFlyer10-30-2012_0.pdf

3-      Joan Halifax  La compasión y el verdadero significado de la empatia TED women 2010 https://www.ted.com/talks/joan_halifax?language=es

4-      Atención sociosanitaria integrada en cuidados paliativos, Silvia Librada Fundation New Health, Emilio Herrera Fundation New Health, Tania Pastrana Uruena Universidad técnica de Aquisgrán Alemania. Abril 2005 Fundación Caser.





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