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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Sabedoria Popular

Gosto de provérbios. Eles condensam toda uma filosofia de vida, um olhar sobre o mundo, um olhar sobre o homem, nas suas grandezas e misérias. Há um, muito curioso, que reflete uma sociedade agrícola: a vaca ruiva, assim como é, cuida. Centrada em si mesma, não lhe passa pela cabeça que haja vacas de outras cores. Mais abrangente, saindo do mundo da lavoura, temos outro provérbio que diz: o ladrão pensa que todos o são. Este, significando o mesmo, é, no entanto, mais complexo. O ladrão tem consciência que é ladrão. Sabe que o é.  Pois se ele o é, o melhor é desconfiar de todos os outros. E em todos vê um ladrão. E ninguém o convence do contrário. De facto, é muito difícil conhecer as pessoas. Difícil? Não. Não é difícil. É impossível. As pessoas são como frascos bem arrolhados. Vamos lidando com elas como se fossem frascos de perfume, frascos lindíssimos, mas quando se abrem sai o cheiro pestilento de veneno mortífero.

Outro provérbio que me dá que pensar. Não será bem um provérbio - é mais um aforisma popular: a vingança serve-se fria. Não me parece que seja um conselho.  Nunca a sabedoria popular aconselharia um sentimento tão desprezível. É mais uma constatação. Acho que este provérbio será sobretudo um aviso a aconselhar prudência a quem deseje vingar-se. É que o feitiço pode virar-se contra o feiticeiro. A vingança cega não vê que, ao desferir as setas, elas podem fazer ricochete e virarem-se contra o próprio que as desferiu. Ao querer enlamear o outro, julgando que o salpicam, enche-se de lama da cabeça aos pés. O vingativo não age pelo impulso do momento. Fica a remoer. Não lhe sai da cabeça. A vingança está sempre associada a covardia, a crueldade, a frustração, ao vazio de uma vida. Relacionada com a vingança, há uma frase que muitas vezes citamos em momentos de raiva, quando somos ofendidos: olho por olho, dente por dente. Mas esta frase não está ligada à vingança, mas sim à justiça. O castigo deve ser proporcional ao crime. É uma das leis consignadas no primeiro código que foi elaborado, gravado numa pedra, em escrita cuneiforme, organizado por Hamurabi, Rei da Mesopotâmia, atual Iraque, cerca de 1772 antes de Cristo, ficando conhecido por Código de Hamurabi. Podemos observar essa pedra no Museu do Louvre, em Paris.

Há um provérbio oriental que não diz respeito a vingança, mas a um outro sentimento perante a ofensa: a indiferença. Se o desejo de vingança revela um espírito desprezível, a indiferença revela um espírito superior. O nosso povo diz: palavras loucas, orelhas moucas. Os povos do deserto dizem: os cães ladram, mas a caravana passa. Eu gosto particularmente deste provérbio. Amo o deserto, a sua imensidão, o alaranjado das suas areias. Tive o privilégio de o apreciar: viajei de camelo, dormi numa tenda, vi o por do sol, o céu estrelado, sem limites, o nascer do sol, ouvi o silêncio. Gosto de visualizar este provérbio: vejo a altivez do camelo, a pequenez dos cães a correrem ao lado, pouco mais alcançando que as patas. E indiferente, o viageiro segue viagem, absorto na grandeza do deserto, de olhar contemplativo, sem ver nem ouvir os cães.

Cecília Rezende



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