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domingo, 17 de janeiro de 2021

Encadeamentos

Há algumas piadas infames e antigas que nos fazem rir. Aí vai uma. Um cão cubano imigrante é entrevistado por um cachorro brasileiro. Você não tinha plano de saúde em Cuba? Tinha, nos ajudam a combater as pulgas e há controle de zoonoses. E a comida? Boa, só não é muito farta, mas dá pra viver. O entrevistador, surpreso, entre acuado e a meio latido, pergunta ao cubano por que razão, então, deixara Cuba. Sei lá, respondeu, me deu uma vontade de latir...

A brincadeira é uma ode à liberdade de expressão e denuncia regimes nos quais abrir a boca tem custo elevado, da tortura ao exílio, da perseguição implacável à morte. Ninguém ignora que há muitos lugares no mundo em que o sujeito não abre a boca nem no dentista. Mesmo nos regimes que se dizem democráticos, há formas mais sutis, mas todas perversas, de punir quem não dança, à meia luz, de rosto colado com o poder. Uma das técnicas usuais é simplesmente destinar aos desafetos os rigores da lei, com a má vontade de quem deseja infernizá-los.

Normalmente falamos de liberdade no sentido político, em direitos civis e cidadania, um conceito aliás tão etéreo quanto o sexo dos anjos. O que é de fato cidadania num país tão autoritário como o nosso? Quem souber, envie cartas para a Redação, mas não vale copiar manuais prontos, destes que se encontra na rede mundial e os papagaios de todas as matas repetem.

O sentido político de liberdade é apenas a parte visível do iceberg humano. Suspeito da estreiteza da pregação de liberdade presa ao discurso da política, aos ritos da democracia formal e à satisfação dos instintos. Você vota, de dois em dois anos? Sim? Então você vive numa democracia! Conversa mole. A liberdade vai muito além deste manual do escoteiro.

Não é livre aquele que mente, porque tem o peso de lembrar qual a versão que deu e para quem a deu, como um sucedâneo da verdade. Também não é livre aquele que trai, como não é livre o escravo dos respeitos humanos, das conveniências e do politicamente correto. A liberdade tem preço e os grandes o pagam. Mal passadas as festas juninas, ainda é tempo de lembrar do exemplo de João Batista, o pregador do deserto. Filho de um casal estéril, “símbolo de uma sociedade cansada e que já não escutava”, como ouvi dias atrás, João era pobre e livre.

Gritaria também hoje “arrependei-vos” para esta sociedade anestesiada, que caminha para o abismo ao som da flauta dos enganos. Assim como a democracia pode desandar na sua perversão, a demagogia, também a religião pode descambar para a trapaça, como temos visto em muitas denominações cujos líderes terão contas altas a ajustar no Juízo Final. Há quem se mostre generoso com estes notórios charlatões, justificando sua brandura por conta da salvação de muita gente que estava perdida e pelo menos encontrou um caminho melhor. Não seria esta uma nova versão de os fins justificam os meios?

Dominados por falsos profetas e verdadeiros Judas em postos chave da república, não podemos ser livres. Não faz muito tempo a malha ferroviária brasileira foi privatizada, por valor muito baixo, sob a eterna alegação de que era a única saída. Foi mais uma espada que se cravou no coração do país, já desnacionalizado nas telecomunicações e em tantas outras áreas de capital importância. Parece não haver limite para o entreguismo. Diante disto me surpreende que ainda haja quem dissipe seu tempo buscando nas ideologias a explicação para os males do Brasil.

A esquerda diz que a direita tem culpa no cartório, mas não para de privatizar e não aponta a solução para a escorcha do país pelo sistema financeiro. A classe privilegiada, atônita e medrosa, vez por outra ainda bajula os que a contestam. Como se oferecesse um banquete justamente a quem julga que tudo que está sobre a mesa não passa de usurpação do anfitrião. Como se comporta a esquerda diante da aristocracia covarde? A hostiliza, mas não rejeita seus afagos e comendas, exorcizando infâncias difíceis e juventudes frustradas. Pura hipocrisia.

Precisamos substituir os traidores, sejam eles de esquerda ou de direita. Traidor não tem lado. Então será possível resgatar o sentimento nacional de identidade, porquanto hoje somos servos da banca e comandados por muitos desonestos. Mas é preciso, como aquele cão, ter vontade de latir neste mar de silêncio e derrotismo que existe em torno dos temas maiores do país.

J. B. Teixeira


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