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sábado, 16 de janeiro de 2021

No País de Alice

Viajara a trabalho para a Suíça e me hospedara em Grenchen, um dos polos relojoeiros da terra helvética, vizinha da medieval Solothurn. Sozinho, mantinha disciplina espartana no gelado fevereiro, que ameaça quebrar as orelhas de quem desafia as baixas temperaturas. Nos finais de tarde tratava de comer algo e caminhar um pouco antes de me recolher. Num belo dia fui à Igreja para rezar um pouco. Me sentia em dívida e entrei. O templo estava vazio e quase às escuras. Apenas uma luz bem posicionada, um pouco acima do Cristo crucificado, rompia o breu. Ajoelhei-me e, sob o impacto daquela visão, em absoluto silêncio, me quedei em oração.

Naquela tarde falei com Deus e sei que me ouviu. Como sempre nos ouve, mas naquele dia tive a certeza do coração abrasado. Quase três décadas se passaram, mas não diminuíram a força daquele momento. Infelizmente estas passagens foram raras em minha vida, o que as tornou tão marcantes, até porque o mundo agitado e as nossas ambições não propiciam o recolhimento necessário para que a sensação sobrenatural conquiste um espaço em nosso peito.

Guardo boas recordações daquele país, organizado como só ele, mas simpático, de uma gente que gosta de cantar e preserva um ar pastoril, a despeito de sua evolução tecnológica. Ainda que discretos, os suíços revelam o orgulho de terem resistido à invasão de outros povos. Mercê de seus alcantilados e vizinhanças íngremes, os Alpes constituíram sempre uma defesa natural contra invasores e até hoje, tanto quanto sei, cada suíço continua sendo um soldado a serviço de seu país. Numa noite, participantes de um encontro técnico na área de mecânica de precisão, fomos jantar num restaurante de montanha. A refeição, o típico raclet, com um enorme queijo habilmente fundido por um atendente, foi complementada por um bom vinho. Quando saímos, começava a nevar. Um gato, encimado numa mureta, como uma bola de algodão pensante, parecia refletir sobre o momento de procurar um abrigo. São imagens que não se apagam.

">A Suíça manteve-se neutra durante a II Guerra. Em meio a tantos desvarios, preservou relativa normalidade. Na segunda metade do século XX, preocupados com a Guerra Fria, os suíços construíram inúmeros abrigos nucleares no subsolo de instituições e empresas. Visitei um deles. Tinha provisões para algumas semanas. Perguntei o que fariam no caso de uma hecatombe. Permaneceriam reclusos até que a poeira baixasse, após o que um dos sobreviventes daria um pulo no lado de fora para avaliar a situação ... Situação precária, é claro, diante da radioatividade que certamente não teria decaído. Ainda hoje a Europa dorme com um olho aberto diante do perigo crescente de conflitos de toda sorte. São medos que não terminam.

Com a crescente disparidade entre as regiões de prosperidade e o mundo subdesenvolvido e mesmo miserável, com carências as mais primitivas, constata-se que os organismos internacionais continuam perdendo influência, o que silencia clamores justos. Os que não choram, porque tudo podem, me fazem lembrar do País das Maravilhas, de Lewis Carroll, que lecionava matemática em Oxford como >Charles Lutwidge Dodgson. Vivem num mundo à parte, no outro lado do espelho, onde planejam e impõem  regras - que criam a seu bel prazer para o atendimento de suas ambições,- e as mudam quando bem lhes aprouver.

Imaginei o mundo, dias atrás, em uma destas situações cotidianas angustiantes. Aguardava no carro, estacionado, quando um péssimo motorista iniciou manobras para colocar-se à minha frente. O cidadão padecia em sua pouca destreza. Ia para frente e para trás, não conseguindo aproximar-se do cordão da calçada. Quando engatava a ré, antevia a pancada... Vai bater! Parava em cima, tirando tinta, para depois tornar a avançar, tirando qualquer um do sério.

Dias atrás um amigo, que anda a ler sobre os Romanov, se disse chocado com a insensibilidade dos czares, como se o mundo estivesse livre de tais infortúnios. Lembrei a ele que a desfaçatez dos governantes brasileiros, ladrões empossados em significativa parcela, a crueldade da agiotagem internacional e a brutal frieza dos países mais ricos são sucedâneos modernos do que outrora era privilégio de uma turma de sangue azul. Volto ao motorista inábil e confesso, estacionado na minha insignificância, a sensação de que o mundo vai bater, rearranjando as melancias na carreta da humanidade.

J. B. Teixeira


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