A aprovação da lei da eutanásia ficou esta sexta-feira consumada no Parlamento. Marcelo pode promulgar, enviar para o Tribunal Constitucional ou vetar – neste caso, bastará aos deputados repetir a aprovação. Os bispos católicos reagiram.
A Assembleia da República aprovou nesta tarde de sexta-feira a lei que legaliza a morte medicamente assistida, com 136 votos a favor e 78 votos contra. A votação teve mais oito votos favoráveis do que o projecto do PS que, no ano passado, foi o mais votado com 128 votos. No caso de um eventual veto do Presidente à lei, os deputados terão de aprovar de novo a lei – o que, com o resultado agora obtido, está garantido que aconteça.
A nova lei define como “eutanásia não punível a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja actual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico, ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.”
Segundo a nova lei, a eutanásia pode ser solicitada por cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional. O articulado também prevê que a objecção de consciência possa “ser invocada a todo o tempo e não carece de fundamentação”, como prevê o diploma aprovado.
O pedido deve ser feito por três vezes e deve incluir os pareceres do médico orientador e de um especialista da patologia de que sofra o doente, bem como de um psiquiatra, se houver dúvidas sobre a “vontade séria, livre e esclarecida” do doente ou sobre alguma eventual perturbação de que padeça. Mas o processo pode ser anulado em qualquer fase, a pedido do doente, se este ficar inconsciente ou sempre que haja um parecer negativo. Ao mesmo tempo, a eutanásia não é motivo para exclusão da pessoa de seguro de vida, mas o segurado não pode alterar os beneficiários depois de ter começado o processo da eutanásia – nem pode beneficiar dele os profissionais que participem no acto.
Entre as primeiras reacções, o conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) exprimiu a sua “tristeza e indignação”, acrescidas “pelo facto de se legalizar uma forma de morte provocada no momento do maior agravamento de uma pandemia mortífera, em que todos queremos empenhar-nos em salvar o maior número de vidas, para tal aceitando restrições da liberdade e sacrifícios económicos sem paralelo”.
Os bispos recordam que a lei agora aprovada pode ainda “ser sujeita a fiscalização da constitucionalidade” mas não fazem nenhum apelo directo ao Presidente para que vete a lei.
Ao contrário do argumento dos defensores da morte medicamente assistida, segundo os quais pode haver pessoas que, em situações limite de sofrimento, podem pedir para morrer e que isso não deve penalizar quem os ajuda, os bispos afirmam que não podem “aceitar que a morte provocada seja resposta à doença e ao sofrimento”, pois isso “é desistir de combater e aliviar o sofrimento”.
Esta lei traduz um “retrocesso cultural sem precedentes” e devia antes proteger-se a vida, “sobretudo quando ela é mais frágil, por todos os meios e, nomeadamente pelo acesso aos cuidados paliativos, de que a maioria da população portuguesa está ainda privada”, conclui o conselho permanente da CEP.
Concordâncias e dissidências cristãs
No campo cristão, nem todas as vozes pensam o mesmo. Além de ter havido católicos que vieram publicamente defender a lei (o 7MARGENS publicou também, em 2019, vários textos reflectindo diferentes opiniões de crentes, durante o debate parlamentar – bastará colocar, na lupa de pesquisa, a palavra eutanásia, para poder aceder a todos os artigos publicados sobre o tema) o Conselho Português de Igrejas Cristãs (que reúne lusitanos/anglicanos, metodistas e presbiterianos), remeteu a sua posição sobre a nova lei para a declaração que publicou há três anos, quando se iniciou o debate sobre a proposta de legislar o tema.
O Copic considerava, nessa declaração já referida pelo 7MARGENS, que “a vida humana, mesmo a mais debilitada, possui um valor intrínseco e que a sua dignidade escapa a qualquer tipo de avaliação”, mas, ao mesmo tempo, admite “as interrogações dos nossos contemporâneos que (…) hesitam em considerar a obstinação terapêutica e o sofrimento insuportável de alguns doentes em fase terminal como admissíveis.”
A posição do Conselho de Igrejas “não é tanto afirmar um acordo ou um desacordo de princípio, mas sim a de que os cristãos devem envolver-se num diálogo aberto para que seja possível encontrar caminhos que respeitem a diversidade de convicções sobre este assunto cujo consenso está longe de existir” e que todos os cristãos devem empenhar-se em conseguir “uma sociedade mais misericordiosa e compassiva e mais capaz de agir na defesa dos mais frágeis e dos que sofrem”.
Também há três anos, oito confissões religiosas, incluindo a Conferência Episcopal em nome da Igreja Católica, publicaram uma declaração recusando a possibilidade legal da eutanásia e do suicídio medicamente assistido.
Politicamente, a votação final da lei também manifestou divisões: nem toda a esquerda votou a favor, nem toda a direita votou contra. Pronunciaram-se a favor da lei 136 deputados (a maioria dos do PS, 14 do PSD, e todos os do Bloco de Esquerda, PAN, PEV, e as deputadas não-inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues). Do lado oposto, contra a lei, esteve a maioria do PSD (55, incluindo Rui Rio e praticamente toda a sua liderança), nove deputados do PS, e ainda o PCP, CDS e os deputados solitários da Iniciativa Liberal e Chega. Registaram-se quatro abstenções – duas do PS e duas do PSD (a lista completa dos deputados que votaram diferente da maioria da sua bancada foi publicada na Família Cristã).
E agora, Presidente (ou Constitucional)?
No debate prévio à votação, os partidos resumiram argumentos já referidos durante o debate: Isabel Moreira (PS) diz que a nova lei “acolhe as escolhas de cada pessoa” em vez de “perseguir alguns”. José Manuel Pureza (BE) advoga a justeza e bondade da lei e diz que ela combina “arrojo com prudência”. José Luís Ferreira, também diz que ela é “sensata e justa”, mas contesta o facto de ela permitir que a eutanásia seja praticada nos hospitais privados, para impedir que ela se torne “um negócio”.
O CDS pondera remeter a lei para o Tribunal Constitucional (nesse caso, a fiscalização sucessiva será mais demorada do que se for o Presidente a enviar), pois considera-a “uma derrota para todos”, como disse Telmo Correia. E António Filipe (PCP) diz que compreende o sofrimento de pessoas com doença terminal, mas o que esta lei consagra “é uma mensagem do legislador para a sociedade”, que arrisca banalizar “o recurso à eutanásia”.
A votação desta sexta-feira já tinha sido precedida por uma intensa campanha das mais variadas organizações católicas e “pró-vida” nas redes sociais a favor da rejeição do projeto de Lei. “Apelamos uma última vez aos deputados para que revejam a sua posição no momento de votar a lei em plenário”, lia-se, por exemplo, num manifesto subscrito pela Cáritas, União das Misericórdias, Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade Social, Universidade Católica e Casa do Gaiato de Lisboa, entre outras. No mesmo manifesto, as organizações divulgavam a sua intenção de, caso a lei fosse aprovada, apelar ao Presidente da República “para que faça o que estiver ao seu alcance para travar a legalização da eutanásia em Portugal.”
Marcelo Rebelo de Sousa pode enviar a lei para o Tribunal Constitucional, até oito dias depois de a receber, suscitando a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade, de acordo com o artigo 136º da Constituição. Se não o fizer, terá de promulgar a lei ou exercer o seu direito de veto. Nesse caso, segundo o mesmo artigo da Lei fundamental, bastará ao Parlamento repetir a votação.
Recorde-se que o jurista Pedro Vaz Patto, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica, defende de há muito que o Presidente da República, caso não queira vetar politicamente a lei, pode, fundamentando-se no princípio da “inviolabilidade da vida humana”, submetê-la ao parecer do Tribunal Constitucional.
Contra a decisão do Tribunal Constitucional alemão de considerar inconstitucional a lei que qualifica o suicídio assistido como crime insurgiram-se esta semana os bispos alemães, através de comunicado do seu conselho permanente. Nele se pode ler que “a liberdade de cada pessoa para viver cada fase da sua vida de acordo com as suas próprias ideias é de importância fundamental”, mas tal não torna “o suicídio assistido uma opção ética aceitável.”
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