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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

No país errado

Temos na área externa o tal piso ecológico, cujo nome não souberam tupiniquizar e pronuncia-se peiver. Discípulo de Ariano Suassuna, deploro estas macaquices, mas estamos cercados por elas. Foi uma rendição sem luta. Por falar em Suassuna, um dos livros que li às gargalhadas foi “Auto da compadecida”, obra de um talento genuíno e autêntico, criador de cabras e que se lixava por não ter saído do Brasil. Suassuna faz falta.

Sei que formigas aeram a terra e portanto sua utilidade natural é extensa, mas não se pode aceitar que façam sua edificação em qualquer lugar. Num sábado, logo cedo, ataquei a parte visível de um formigueiro. Vassoura pra cá, vassoura pra lá, a maior parte da terra voltou aos interstícios do tal peiver. Por poucas horas. O comando do formigueiro o reconstruiria em poucas horas, protegendo os ovos tantos que a varrição expôs. Devem ter infrasónicas trombetas para que tudo volte a se ajeitar em poucas horas e o bem comum seja restituído.

Dias atrás estava no habitual sebo, garimpando livros bons e baratos, na quietude que a tarefa exige, quando uma senhora conhecida do livreiro rompeu a porta, espaventada. Falava pelos cotovelos e pelos joelhos também. Pediu que lhe indicassem um livro, quase como quem pede a sugestão de um desodorante. Em que tipo de livro a senhora está interessada? A pergunta se impunha, afinal um sebo vai dos clássicos russos aos livros de espiritismo e autoajuda. Quero algo de cultura! Lá no meu canto, a resposta me surpreendeu. Sua sede de cultura, senão superficial, como pareceu, de pronto limitaria o campo da busca e alteraria seu pedido inicial.

Acho mesmo que aquela senhora, passada dos setenta, queria mesmo era jogar conversa fora. E quem sabe cativar a admiração dos simples que ali estávamos, emudecidos pela busca de uns e pelo trabalho de outros. Quem sabe garimpar alguns elogios, de que parecia carente. Valendo-se da menção de um autor francês, pedra angular para sua estratégia, revelou que nascera no país errado. Ah, a França! Dizem que os franceses são deseducados, mas nunca senti qualquer hostilidade. Talvez sejam meio rudes com quem não fala francês... Ah, suas comidas! Eu deveria ter nascido na França...

Como as pessoas precisam de reconhecimento! Filha dileta do pecado original, a vaidade por certo nos acompanhará até o fim dos tempos. É como erva daninha, que sempre requer extração. Em minhas andanças livrescas celebro cada descoberta que possa lançar alguma luz em meu limitado entendimento nos campos da teologia e da filosofia. Há não muito tive a sorte de encontrar “O mundo e eu”, de João Mohana, que explicita três níveis de necessidades, das mais básicas às mais elevadas: psicobiológicas, psicossociais e psicoespirituais.

Mohana, médico e sacerdote, enuncia que a frustração em qualquer nível de necessidade pode ser curada pela satisfação no nível que lhe é superior. Isto explica por que os frustrados na sociedade, no campo psicossocial, não mitigam suas mazelas apelando para comilanças e orgias, do campo psicobiológico. Suas frustrações são chama que arde até debaixo d´água.

Provavelmente nunca mais verei aquela senhora que preferiria ser francesa, mas torço para que perceba a inutilidade da busca e a direcione para o lado espiritual. Em fim de linha, busca algum reconhecimento psicossocial tardio por sua existência, que os elogios do generoso livreiro não preencherão. Quanto ao prazer causado pelas gentis perguntas de alguns circunstantes, por certo haveria de esfumar antes do anoitecer.

Muito além do seu deslavado exibicionismo, que parece nunca sair de moda entre nós, ali estava exposta talvez a nossa maior fratura cultural, a suscitar a pergunta cruel: os brasileiros não gostam de ser brasileiros? Suspeito que não gostem, como já me sugerira uma pessoa que admiro pela erudição e sabedoria. E este desgosto, cruel e mal confesso, responde pelo pontapé inicial de nosso fracasso. Não há como ser bem sucedido deste jeito.

O que mais incomoda é a nossa incompetência para construir algo no mínimo digno do tanto com que fomos aquinhoados. Se até insetos são capazes de reagir a hecatombes, retomando sua vida comunitária, por que cargas d´água seguimos patinando no atraso? Tivéssemos um pingo de coesão estaríamos em outra. Povos sem autoestima são explorados até a última gota.

J. B. Teixeira

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