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sexta-feira, 1 de março de 2019

Aggiornamento

Por a mão em coisas antigas é sempre uma aventura. Até as ideias têm sobre si a poeira do tempo, que é preciso remover para que se possa apreciar seu verdadeiro valor. Há quem rejeite tudo que é velho, em nome de renovação e progresso. São bandeiras que combinam com técnica e avanço científico, mas não as tremulo sem filtrá-las. Afinal, somos muito mais que pressionadores de teclas. Gosto de lembrar da historieta em que um sujeito proclama certas ideias de forma entusiasmada e seu oponente responde que parte do discurso está correta e outra parte, errada. E complementa: o que está certo é antigo e o que é novo está errado.

A ideia de atualização um dia bateu à porta da Igreja e foi então convocado o Concílio Vaticano II, sob novos ventos. A Igreja sempre se posicionou diante dos grandes dramas e  indagações da humanidade, ainda que não o faça com estardalhaço. Por conta de sua missão, manifesta-se através de cartas pastorais, encíclicas e outros documentos, como o próprio catecismo.

João XXIII convocou o Concílio em dezembro de 1961, o inaugurou em outubro de 1962 e veio a falecer em junho de 1963. A bomba, por assim dizer, caiu no colo de Paulo VI. Que virou-se como pôde. O Concílio realizou-se em quatro sessões e deu-se por concluído em dezembro de 1965, com a emissão de constituições, decretos e declarações. Me situando entre tais datas dou-me conta de que minha infância coincidiu com este período. Até hoje o túmulo de João XXIII é um dos mais visitados na cripta de São Pedro. Anos atrás vi seu corpo, intacto, exposto num ataúde no interior da Basílica. Hoje canonizado, sua última Encíclica foi Pacem in Terris, em que exalta “a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade”.

João XXIII inicia afirmando que a paz “não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus”. Não se poderia esperar outra coisa, é verdade, mas o documento começa pontificando a centralidade divina, para então enaltecer os feitos da ciência e da técnica como evidência de uma ordem nos seres vivos e na natureza, dignificando o homem por desvendá-la e frui-la em seu proveito. A seguir João XXIII denuncia que “Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força”. Recordemos que a década de 60 foi de plena efervescência da Guerra Fria, com a construção do Muro de Berlim, o conflito no Vietnã e a corrida espacial num clima de Guerra Fria.

As consequências do Concílio são comentadas até hoje e creio que o serão por muito tempo. A discussão sobre seus eventuais erros pastorais e certos pontos da doutrina levanta considerável controvérsia, para a qual não me sinto nem de longe habilitado. O que sei - e para tanto não se faz indispensável maior conhecimento,- é que houve desvios danosos no último quarto do século XX, com decorrências profundas na formação de sacerdotes.

Reconhecer faltas é uma exigência de honestidade intelectual. Pedir perdão é um gesto de profunda consciência e humildade e os Papas não se têm furtado a tais demonstrações. Mas assumir até o que não temos em nossas costas, ou martirizar a consciência por crimes e omissões que não tivemos, é como pagar uma conta de bar muito além do que se consumiu. Ainda há muitos católicos que não rebatem, por desconhecimento, invectivas de que a Igreja omitiu-se diante do diabólico tráfico de escravos. Ignoram as condenações papais de Pio II (1482), Paulo III (1557), Urbano VIII (1639) e Benedito XIV (1741). Uma pitada de conhecimento, honestidade intelectual e canja de galinha não fazem mal a ninguém.

Outra decorrência que ainda sobrevive foram as quedas de sacerdotes em águas materialistas. Foi e segue sendo erro flagrante que ora, na maturidade, entendo melhor. Alguns deles, seja porque se perderam na autocrítica, seja porque lhes faltou coerência e sabedoria, foram pescar em águas turvas, como se os cristãos tivessem a aprender do marxismo e não o contrário. Cristo não requisitou pescadores de latas enferrujadas ou botinas desbeiçadas.

Há consequências e o estrago já vai grande. Sacerdotes que confundem altar com palanque expurgam de sua missão a transcendência. Parecem esquecidos de que enquanto Marx clama pela união dos proletários e os incita à luta, a Igreja deve manter-se fiel às palavras de Cristo: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vô-la dou como o mundo dá” (Jo 14,27).

J. B. Teixeira



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