Último encontro do Papa Bento XVI com o clero de Roma
Roma, 20 de Fevereiro de 2013
No
dia 14/02/2013 ocorreu o último encontro do Papa Bento XVI com o clero
de Roma, tradicionalmente realizado na primeira quinta-feira da
Quaresma. Esse ano foi bem especial, devido à “notícia do século”, como é
chamada na Europa a renúncia do Papa ao ministério petrino. A diferença
dos outros anos, o evento iniciou com uma peregrinação da Praça São
Pedro até a tumba do príncipe dos Apóstolos, guiada pelo cardeal-vigário
de Roma, Agostino Vallini. Ao iniciar, eu trazia na memória as
recordações da Missa do dia anterior, a última celebrada pelo Papa, na
qual ocorreu algo extraordinário: durante a procissão final, todos se
despediram do Papa com incessáveis aplausos e lágrimas. E o Papa,
repleto de uma paz transbordante, sorria e abençoava a todos
docemente[i].
Durante a peregrinação, feita por mais de 1.000 padres de todo o
mundo, cantava-se a ladainha dos santos, algo que me fez recordar o
funeral do Beato João Paulo II, o último Conclave e o dia da minha
Ordenação, quando nos prostramos diante de Deus, abandonando-nos à sua
Providência, com a certeza de que não estamos só, pois os santos
acompanham e intercedem pela Igreja. Ao chegar diante da tumba de Pedro,
rezamos o Símbolo dos Apóstolos (Credo) em italiano. Era curioso que
muitos liam o texto, por medo de se equivocar num momento tão solene;
logo cantamos o Pai Nosso e Ave Regina caelorumem latim, dessa vez sem receio de errar.
Depois disso nos dirigimos à Aula Paulo VI para o esperado encontro; assistimos então à gravação da lectio divina do
Papa aos seminaristas de Roma, ocorrida uma semana antes. Eram
impressionantes as palavras de fé do Papa que dizia que devemos evitar
tanto o falso pessimismo, o pensar que tudo vai mal e que a Igreja é uma
árvore que está morrendo; quanto o falso optimismo, daqueles que vêm os
Seminários, conventos e igrejas fechando e dizem que tudo vai bem. Em
vez disso, os cristãos devem ser realistas e estar certos de que o
futuro é nosso, é de Deus, e que a árvore da Igreja cresce sempre de
novo, pois ela sempre se renova; por isso devemos servi-la com a
consciência de que ela é de Deus, que a mantém e governa; os sacerdotes
devem dizer simplesmente: “somos servos inúteis; fizemos o devíamos
fazer” (Lc. 17, 10)[ii]. Essas palavras do Papa são uma grande lição de
humildade não só para os padres e seminaristas, mas para todo cristão.
De fato, essa foi a mais bela lição do “Papa-professor”, dada desde a
cátedra da humildade, que se tornou uma imagem da Cruz de Cristo.
Então assistimos a maravilhosa homilia do Papa no dia anterior e por
fim chegou o admirado Pontífice. Entrava no auditório com passos
tranquilos e foi acolhido pelo rumor dos aplausos que não queriam
terminar. O cardeal Vallini então fez um belíssimo discurso, cheio de
emoção, que expressou perfeitamente os sentimentos dos que estavam
presentes. Disse que estávamos ali como os anciãos de Éfeso que se
despediram de São Paulo com abundantes lágrimas; e trazíamos no coração
sentimentos contrastantes: tristeza e respeito, admiração e pesar,
carinho e orgulho. Em tudo, porém, adorávamos a vontade de Deus e nos
alegravámos por ter connosco uma vez mais o amado Papa. Disse ainda que
os padres permanecerão sempre unidos ao doce e forte exemplo do Papa,
que o seu Magistério é uma grande riqueza e que nos comprometíamos a
rezar por ele nesses dias difíceis. Naquela hora foi impossível
controlar a emoção. O cardeal pediu ao Papa então que nos orientasse uma
última vez, no contexto do ano da fé, contando-nos as suas recordações e
esperanças, ao participar do Concílio Vaticano II.
O Papa mais uma vez surpreendeu a todos porque mostrava a mesma
serenidade do dia anterior, alegria e um extraordinário bom humor. Ele
arrancou de nós boas gargalhadas[iii]. Disse que era grato pela nossa
presença e oração e que mesmo agora que ele se retirava, sabia que
através da oração estaria próximo de nós e que tinha a certeza de que
também nós estaremos próximos a ele, embora ele passaria a estar
escondido para o mundo. Essas palavras nos confortaram, mas nos fizeram
sentir antecipadamente as saudades de um grande Papa.
Ele disse então que a sua idade não lhe tinha permitido preparar um verdadeiro discurso e que faria somente uma pequena chiacchierata,uma conversa informal, que na verdade durou mais de 40 minutos[iv].
E ele falou do Concílio Vaticano II, resumindo suas recordações
pessoais, as principais discussões teológicas antes e durante o Concílio
e os principais pontos doutrinais de cada documento publicado. Expôs as
questões centrais da Liturgia, da Eclesiologia, do Ecumenismo e diálogo
intereligioso, além de falar da relação da Palavra de Deus e o
Magistério e da liberdade religiosa. Fez uma síntese extraordinária e
surpreendeu a todos ao falar do “Concílio paralelo”, que foi o dos
jornalistas que interpretavam o Concílio não a partir da fé, mas de
categorias políticas. E disse que infelizmente esse foi o “Concílio” que
se tornou popular naqueles anos difíceis e que o verdadeiro Concílio
vem sendo aplicado aos poucos. Pergunto-me se no momento actual os que
interpretam a renúncia do Papa a partir de categorias políticas não
fazem o mesmo que fizeram os membros daquele falso Concílio.
O Papa nos contou algo que gerou boas risadas e que nos ajuda a
entender a sua recente decisão. Disse que em 1961 o cardeal de Colónia,
Frings, pediu ao professor mais jovem da Universidade (ele mesmo,
professor desde 59) preparar um projecto de texto para uma conferência
que seria dada em Génova, sobre o Concílio e o pensamento moderno. O
jovem Ratzinger fez o texto que agradou tanto ao cardeal, que o leu
completamente na Itália. Logo depois o cardeal foi chamado pelo Papa
João XXIII para uma conversa e pensou que perderia o seu título de
cardeal, que usaria a “púrpura” naquele dia por última vez. Na
audiência, porém, o Papa João XXII foi ao seu encontro, o abraçou com
afeto e disse: “Obrigado, eminência, dissestes o que eu queria dizer,
mas não tinha encontrado as palavras”.
A anedota é simpática e nos revela algo profundo, que certamente
influenciou o jovem Ratzinger: a humildade do cardeal, que confiou ao
mais jovem professor da Universidade (tinha 34 anos) uma importante
tarefa; a humildade do Papa João XXIII de agradecer ao cardeal por ter
expresso o que ele pensava, sem encontrar as justas palavras. Certamente
o exemplo desses homens acompanha o Papa, assim como o do primeiro
pároco de quem ele foi vigário, que certo dia levou a Comunhão a um
doente e, ao retornar à casa, veio a falecer, pois também estava
gravemene enfermo. Esses gestos admiráveis transmitidos ao Papa nos dão a
certeza de que a Igreja é uma família, na qual o bem de uns repercute
em todos.
O encontro foi um momento de muita graça, no qual o Papa transmitiu
serenidade a todos e um forte testemuho de fé, de esperança e de
humildade. Saímos de lá agradecidos a Deus e mais convictos de que a
Igreja é de Deus, que somos apenas “servos inúteis”, pois só realizamos o
bem que Deus nos permite fazer. O Papa Bento XVI, que se considera um
“humilde servo na vinha do Senhor”, foi sempre para nós, padres, um
exemplo de sabedoria, de vida radicada na Palavra de Deus e de
humildade. Por isso estamos imensamente agradecidos a Deus por sua vida e
ministério e confiantes de que Jesus Cristo, o Bom Pastor, continuará
guiando a sua Igreja até a sua meta.
Pe. Anderson Alves, diocese de Petrópolis.
[i] O vídeo do final da Missa pode ser visto em: http://www.youtube.com/watch?v=c6NyDUMgXoU
[ii] O texto completo está disponível em italiano e em francês. Em
breve também em portugues. O discurso foi feito no dia 08/02/2013.
Cfr.: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2013/february/index_en.htm
[iii] Alguns momentos importantes desse encontro pode ser visto em: http://www.romereports.com/palio/el-papa-se-despide-de-los-sacerdotes-y-les-dice-que-pronto-estara-escondido-para-el-mundo-spanish-9051.html
[iv] Alguns trechos do discurso em português pode ser visto em: http://noticias.cancaonova.com/noticia.php?id=288727 O texto completo está disponível em italiano e em breve estará em português: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2013/february/documents/hf_ben-xvi_spe_20130214_clero-roma_it.html
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