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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Perdas e danos

Rescaldo dos ninhos ganhos pela filha pequena, eis que abro a pedido dela seu último ovo de chocolate desta safra pascal. Tem 150 gramas e 10 centímetros de altura, mas a embalagem aparenta o dobro: o ovo, envolto em alumínio, está assentado na boca de um copo plástico,  embrulhado numa estampa com mais de meio metro quadrado, uma fita, uma etiqueta e um pendurador plástico. Trata-se de um exemplo rematado de desperdício, na linha do molho mais caro que o peixe, da rolha mais cara que o vinho, da propaganda mais cara que o produto. Nem sempre foi assim. Os ninhos eram feitos com palha ou barba de pau, recolhida na Sexta-Feira Santa, ovos de galinha pintados, duros ou preenchidos com amendoim açucarado, balas de goma, barras ou ovos pequenos de chocolate e pão-de-mel. Corriam os dias de minha infância.

Lembro da venda do Seu Caminha e da Dona Diva, na esquina de nossa quadra. Quantas vezes busquei para minha mãe algo que faltava na cozinha. Naquele tempo uma caminhonete, com reservatório de inox e batizada de “vaquinha”, passava nas ruas no início das manhãs. Todos acorriam, frascos e canecas à mão, para abastecer-se. Era a primeira oportunidade para distribuir bons-dias entre a vizinhança, à la Machado de Assis. Hoje compra-se leite em embalagens caras, sabe-se lá com quais e quantos conservantes. Não creio que o hígido e controlado leite de hoje, que apanhamos nas prateleiras, seja melhor que o leite da “vaquinha”.

Por falar em leite, lastimei quando um vizinho de sítio vendeu sua única vaca leiteira. De tempos em tempos buscava alguns litros para nutrir a filha pequena. E sobretudo para lembrar o que é leite, de fato. Por alguns dias o saboreávamos com café. Por que vendeu a vaca leiteira? Porque quase ninguém adquiria seu produto e o custo de mantê-la tornou-se inviável. Sem contar a trabalheira, afinal é preciso ordenhar quando nem amanheceu, sem falhar um só dia.

Por falar em sítio, me vem à memória um pequeno serviço que prestava a meu pai. Constrangido em percorrer pequenos mercados para oferecer as frutas que colhia, me propôs uma comissão e assim as frutas passaram a ter melhor destino que o apodrecimento. Eram quantidades modestas, mas suficientes para melhorar um pouquinho os recursos para os finais de semana deste que vos escreve. Não era difícil. Um pouco de força física e um percurso de sucesso resultavam rapidamente em caixas vazias. E uns trocados no bolso.

Há não muito, vendo pelo retrovisor da alma aqueles dias distantes, tentei vender abacates do sítio. Não eram muitos, até porque desejava verificar se ainda era possível comercializar frutas daquele jeito. Nos mercados de rede nem adianta bater. Suas compras são centralizadas e não faria sentido algum deslocar-se às suas sedes para entregar os frutos da terra de um pequeno produtor. Nos mercados locais, médios e grandes, a dificuldade é parecida. Fale com o Fulano na segunda-feira. É ele quem realiza estas compras e normalmente o faz numa central de abastecimento da capital. Pois bem, procurei por Fulano no início da semana.  Mostrou que já tinha pelo chão muitas frutas e não tinha interesse em abacates ou laranjas.

Não é à toa que pequenos produtores têm dificuldade para se manterem. Afora as exigências legais, resta o drama de desovar o que é produzido. De quem é a culpa? A resposta é complexa e sequer sou pessoa avalizada para emiti-la, mas penso que vem de longe, resulta de controles ampliados e da exigência crescente dos consumidores por sofisticação, demandando a quase perfeição de laranjas polidas, por exemplo, sem manchas, ainda que velhas e desprovidas de suas propriedades. Leite? Não é raro que venha do centro-oeste do país, ou mesmo do Uruguai.

Quando vejo nos mercados os frutos suados, húmidos, recém saídos de câmaras frias, não posso deixar de deplorar a andança dos mesmos até nossas casas. É um estilo dissipador de energia e prejudicial à qualidade final dos produtos. Seria necessário respeitar a sazonalidade dos frutos da terra e consumir o que temos à mão, mas não é esta a toada de tempos globalizados, dominados por distribuidores multinacionais, agentes de desova de mercados externos.

Como importar molho de tomate da China e ainda falar em sustentabilidade? Como conjugar ecologia com embalagens caras, indispensáveis devido às grandes distâncias entre produção e consumo? Não chego a defender a volta da “vaquinha” na correria da modernidade mas, jamais conformado, asseguro que aquela vida mais simples tinha outro sabor.

J. B. Teixeira



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