Páginas

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Tiro ao Álvaro

Quando Tramandaí ainda tinha uma brisa noturna que obrigava os frequentadores do balneário a puxar um cobertor, na plenitude das férias dissipei muitas horas num parque de diversões. Como não tinha dinheiro, me divertia apenas olhando. Gostava de observar particularmente o pessoal no tiro ao alvo. Os prémios eram horríveis: um vermute de quinta, badulaques inúteis ou mimos cujo destino final seria o lixo. As armas de ar comprimido utilizavam rolhas. Nada precisas, de pronto contavam com a péssima aerodinâmica das rolhas para garantir o insucesso do atirador.

O camarada mirava no chão e acertava no teto ... Um zarolho com arma normal seria muito mais efetivo que um atirador de elite com aquela fraude. A lógica era similar à dos casinos: a banca nunca perde. Diante dos filhos, da namorada, dos amigos, o sujeito empunhava a atiradeira de rolhas e era massacrado por uma arma que só faltava ter o cano torto. O índio mirava um pouco abaixo, à esquerda, a rolha saía alta e muito à direita. Só poderia ser pior se o piso flutuasse e os alvos se mexessem. Repetida a pontaria, rolha para baixo, na direção certa. Quase! Foi por pouco. Tá perto ... Mais uns tiros. Rolha à direita, rolha acima. E nada. O dinheiro do cidadão se ia, sem que conquistasse pelo menos um miserável urso de astracã. A banca? Faturando.

Ainda assim, a despeito da esperteza do negócio, corriqueira no mundo todo, eram diversões inocentes, que precederam as viciantes máquinas de fliperama, estas sim hipnóticas, capazes de fisgar um sujeito até limpá-lo. Fiquei viciado em observar os melhores jogadores, uma minoria que conseguia prolongar o tempo de permanência nas máquinas. Pois foi mais ou menos nesta época que me contaram uma piadinha infame. No melhor estilo dos teatros de pulgas, um sujeito bebia no balcão de um bar. Tinha junto de si uma maleta, que lá pelas tantas abriu. Tirou um pequenino piano, com um reduzido banquinho, e alojou um rato trajado a rigor. O roedor ajeitou a cauda, experimentou algumas notas e então, pasmando um pau d´água que a tudo assistia, passou a tocar maravilhosamente canções românticas. Claro estava que seu dono ganhava algum com tais apresentações. Insólito, o espetáculo era de fato sensacional, ainda que sempre mal remunerado. Lá pelas tantas uma borboleta deixou a maleta, equilibrou-se sobre suas delicadas patinhas e passou a cantar maviosamente. Solfejava, enternecia, subia o tom, harmonizava com o teclado e deixou o único espectador de queixo caído.

Meu amigo, disse o pau d´água, esta dupla é simplesmente celestial. Você pode ficar milionário com eles. Basta encontrar alguém que possa patrocinar seu início e então desenvolver espaços melhores para que apresentações rápidas te permitam faturar. O empresário mambembe, sem demonstrar o menor traço de alegria, aborrecido e cansado, suspirou para revelar a acabrunhante verdade: “Não é a borboleta quem  canta ... O rato é que é ventríloquo ...”.

Pois bem, quando reflito sobre nosso momento político, o que vejo é um parque de diversões montado para sugar nossos recursos. O parque é dirigido por uma aliança tácita e poderosa entre os três poderes da república, abençoada pela decisão do meio militar de respeitar suas funções constitucionais, deixando para as urnas a tarefa de corrigir o país. Podemos dar certo pelo voto? Bem, como as regras eleitorais são mancomunadas exatamente pelo raposário e as leis foram aprovadas para proteger crápulas, talvez seja mais fácil que as galinhas criem dentes.

Na medida em que as denúncias mais escabrosas sobre a prática política de inúmeros figurões vão se esboroando no paredão da injustiça, cresce a decepção. Um notório ladrão, condenado a décadas de recolhimento em regime fechado, é solto, um alto dignitário é isentado de uma acusação e empresários corruptos são agraciados com uma anistia que esbofeteia o que nos resta de esperança. O povo, impotente, apenas conclui, com o mais profundo desapontamento, que de fato somos campeões mundiais, inigualáveis, da impunidade.

Como no tiro ao alvo, com chicanas tantas e os recursos intermináveis do amplo direito de defesa, a sociedade raramente consegue acertar o alvo. A rolha desvia, cristalizando injustiças. Como alquimistas de araque, exorcizamos a monarquia no século XIX para entronizar uma nova casta de sangue azul, muito mais numerosa e impudente. Como consertar isto sem ruptura institucional? Não faço a menor ideia, mas sei que não será em conversinhas de bar, onde entre um gole e outro até se acredita que existam ratos pianistas e borboletas-soprano.

J. B. Teixeira



Sem comentários:

Enviar um comentário