A cinco dias do início da cimeira convocada pelo Papa para debater o tema dos abusos sexuais do clero, a condenação do ex-cardeal Theodore McCarrick, antigo arcebispo de Washington (Estados Unidos), à pena de “demissão do estado clerical”, na sequência das acusações de abusos sexuais e abuso de poder, tem um significado que ultrapassa em muito a própria sentença e a figura do ex-cardeal (a quem o título de cardeal fora retirado há pouco mais de meio ano, a 28 de Julho de 2018).
É verdade que Francisco já disse duas vezes que não se deveriam criar expectativas demasiadas em relação à cimeira. Mas esta decisão, conhecida no sábado, 16, através de uma nota da Sala de Imprensa do Vaticano, torna óbvio que o Papa quer mostrar que o seu discurso sobre o tema dos abusos é sério – e é para ser tomado a sério. A todos os clérigos abusadores e a todos os bispos que insistem no encobrimento, atirando estes casos para debaixo do tapete à espera que a crise passe, Francisco está a dizer: aconteceu a um “príncipe da Igreja”, por isso, qualquer um pode ser irradiado do ministério.
Claro que o Papa já mostrara o mesmo com o que fez em relação aos bispos do Chile e a outros casos. Mas esta decisão – a primeira retirada de um título de cardeal em quase 100 anos e o primeiro por causa dos abusos – revela, além do mais, uma fina capacidade estratégica, que Francisco também já demonstrou ter, em várias ocasiões. Quando os mais de 100 presidentes de conferências episcopais se preparam para viajar para Roma, este é o aviso de perigo que o Papa lhes mostra logo na sala de embarque de cada um, como um severo discurso de recepção. E pode servir para uma tomada de consciência de que, por todo o mundo, há ainda muito a fazer, e há cada vez mais crentes a querer mudanças claras, no sentido da transparência e de uma verdadeira reforma.
A demissão do estado clerical a que McCarrick, chegado aos 88 anos, ficou agora sujeito foi decidida pela Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), do Vaticano. O congresso (plenário) da congregação já considerara que ele era culpado do “uso impróprio da confissão e violações do sexto mandamento do Decálogo com menores e adultos, com a agravante de abuso de poder”, numa referência ao dever de “guardar castidade nas palavras e nas obras”.
A decisão final foi tomada na passada quarta-feira, 13, na sessão ordinária da CDF, em que foram apreciados os recursos que o ex-cardeal apresentara. McCarrick foi notificado dois dias depois de que, a partir de agora, não pode voltar a exercer o ministério presbiteral. E, para que ninguém ficasse a pensar que a decisão teria passado à margem do Papa Francisco, este confirmou a decisão como definitiva, não podendo ser já sujeita a qualquer novo recurso.
Para esta cimeira convocada pelo Papa, a comissão preparatória pedira aos participantes que ouvissem vítimas de abusos como forma de preparar a sua participação.
Foi o que aconteceu no final da semana, por exemplo, em França e Espanha, mas não em Portugal: no final da reunião do conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP terça, dia 12, em Fátima, os bispos disseram que mantêm “disponibilidade activa” para ouvir vítimas, mas que isso não significaria tomar a iniciativa de chamar alguém.
Ideias sugeridas pelas vítimas e assumidas pelos bispos
Em França, foi o próprio presidente da Conferência dos Bispos, Georges Pontier, que anunciou ir propor duas ideias sugeridas por vítimas com as quais se encontrou, na cimeira sobre os abusos sexuais: a criação de um tribunal eclesiástico especializado e a reforma na organização e tratamento dos arquivos diocesanos.
De acordo com o La Croix International, o também arcebispo de Marselha anunciou as suas ideias depois de se ter encontrado, durante duas horas, com quatro pessoas que foram abusadas por membros do clero. Três delas tinham já estado na última assembleia plenária dos bispos, que decorreu em Lourdes, em Novembro, a falar da sua experiência.
As duas sugestões estavam incluídas no conjunto de 13 propostas feitas pelas vítimas ouvidas pelos bispos. Uma delas, identificada pelo nome fictício de Jacques, dizia ao La Croix: “Roma é um passo importante, mas a verdadeira questão, para nós, é um trabalho profundo com as dioceses e comunidades paroquiais na França.”
A proposta relativa ao tribunal pretende criar, segundo a explicação do próprio arcebispo Pontier, uma instância regional intermédia entre a diocese e Roma, vocacionada apenas para os casos de abuso sexual. “Enquanto a diocese tem a vantagem de estar mais próxima do terreno, também tem o inconveniente de nos tornar menos objectivos”, defendeu. “Estamos emocionalmente envolvidos em nossas dioceses e isso pode prejudicar nosso julgamento.”
A outra proposta pretende regras mais abrangentes para os arquivos. Actualmente, o arquivo sobre um padre é guardado durante dez anos e apenas regista informações gerais sobre as suas tarefas e cargos. “Os nossos arquivos em papel correm o risco de serem deficientes. É evidente que precisamos de falar com as pessoas que hoje guardam memórias, os bispos aposentados, ex-vigários gerais, chanceleres diocesanos…”
“Nos 31 anos em que fui bispo, nunca ouvi falar de um debate sobre os arquivos. Não creio que isso tenha sido calculado ou organizado, simplesmente negligenciámo-los”, justificou, acrescentando que se habituou, nos últimos tempos, a tomar algumas notas sempre que se reúne com algum padre.
No encontro com as vítimas, estas mencionaram outros pedidos: levantamento do estatuto canónico às limitações de julgamento, necessidade de reconhecer o estado, trauma e efeitos do sucedido nas vítimas, ou possibilidade de reparação. Jacques, de Versalhes, diz ter sentido ainda “algumas reticências” em relação ao aspecto financeiro.
O arcebispo admitiu ter concordado me muitos aspectos com as vítimas, apesar de pequenas divergências. E acrescentou que, para ele, o encontro de Roma será “um momento de verdade”, mesmo que seja importante recordar que a Igreja não é só “isso”: “Quando se encontra um padre em França, há 97 por cento de possibilidades de encontrar uma boa pessoa”, afirmou, “mas o que é bom não deve esconder o que é ruim”.
“Alguns nunca deixam de chorar”
Um momento de verdade foi o que se viveu em Madrid, também na semana passada, durante um encontro público e inédito, organizado pela associação de comunidades Redes Cristianas, e pelo portal Religión Digital. A iniciativa teve a participação de um dos bispos auxiliares de Madrid, José Cobo, e de Juan Cuatrecasas, pai de um miúdo que foi abusado por um professor no colégio Gaztelueta, da Opus Dei, membro desta organização católica e que foi condenado, em Novembro, a 11 anos de prisão.
“É muito doloroso ir no metro e chamarem-te pederasta”, disse o bispo, que admitiu: “Sonho que a Igreja, que é parte do problema, seja parte da solução.”
Juan Cuatrecasas, pai de Asier, vítima de abusos entre 2008 e 2010 (entre os 11 e 13 anos), comparou a gravidade dos crimes de abuso aos de violência de género. O abuso sexual é “uma bomba-relógio no interior de um menor”, que se converte “num ser insociável, cheio de ansiedade, pesadelos, convulsões e taquicardias”. E acrescentou, segundo o relato já citado: “Alguns nunca deixam de chorar. São como bonecos partidos, talvez porque, para eles, a cura total não existe e a única coisa que podem fazer é recolocar as peças quebradas do seu puzzle vital.”
Afirmando que não quer “incendiar a Igreja, mas colaborar para a limpar”, acusou no entanto vários bispos espanhóis de, com as suas declarações, continuarem a ofender as vítimas, e o Colégio de continuar a negar os factos, apesar da sentença condenatória. Mas referiu também nomes de bispos e padres que se colocaram ao lado do seu filho e da família – entre os quais citou o do actual arcebispo de Madrid, cardeal Carlos Osoro.
As vítimas, acrescentou o também presidente da Associação Infância Roubada, esperam da hierarquia católica “reconhecimento dos factos, perdão público e ressarcimento moral e económico” – todas elas precisam de terapia e não têm dinheiro para a pagar, disse – de modo a que o pedido de perdão não seja mera retórica e que inclua o acompanhamento real das vítimas.
“Quando escuto as vítimas, experimento comoção, vergonha, dor e fico com o coração encolhido”, respondeu o bispo José Cobo, que contou ter acompanhado pessoas abusadas no seu próprio círculo familiar, quando ainda era pároco em Madrid. E, num curso no vaticano há poucos meses, aprendeu que a primeira coisa a fazer é “escutar o inferno das vítimas”. Porque a mudança, justificou, “não virá apenas com normas e regras, mas com a mudança de coração, para acolher, escutar e gerar uma cultura nova”.
Portugal e os desejos do Vaticano
Opção diferente parece ser a dos bispos portugueses, que optaram por se colocar na expectativa de que alguma vítima aparecesse para falar com o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Os bispos têm insistido na ideia de que em Portugal o número de casso é diminuto e que as regras aprovadas pela CEP em 2012 têm sido suficientes para lidar com estes casos. Mas um conjunto de reportagens publicadas pelo Observador durante a semana passada indiciam que houve reacções diferentes, consoante as dioceses, e que haverá mais casos do que aqueles que foram investigados até agora – dos quais, aliás, não há sequer um número exacto.
Perante o que se passa, o padre alemão Hans Zollner, um dos organizadores do encontro do Vaticano, diz que, com a cimeira, o Papa pretende “assegurar-se de que [as] indicações [que já deu] são implementadas de modo decisivo”. E, em entrevista ao Ponto SJ, portal dos jesuítas portugueses, explica as afirmações de Francisco sobre as baixas expectativas: “O convite do Papa a não criar expectativas demasiado altas nasce do facto da luta pela protecção das crianças não ser um sprint, nem uma maratona, mas uma corrida que exige um empenho constante e duradouro. Portanto, este encontro por si só não vai resolver os problemas. Trata-se de um passo – importante – num longo caminho.”
Sobre a preparação e a avaliação que se possa fazer, acrescenta ainda: “Poderemos falar de sucesso do encontro na medida em que os participantes consigam levar os temas tratados – ou seja responsabilidade, responsabilização e transparência – para as suas Igrejas locais, para que aí possam surtir efeitos. Os obstáculos que no passado dificultaram uma correta gestão dos abusos devem ser claramente reconhecidos, identificados e eliminados de acordo com um plano rigoroso e realista. Cada um dos participantes deverá regressar a casa encorajado para enfrentar as distintas realidades de modo activo e determinado. Tendo em conta a grande diversidade de contextos culturais, políticos, legais e sociais em que a Igreja está presente e pelos quais também é moldada, queremos fortalecer uma ação conjunta e decisiva para o bem-estar e a protecção das crianças e dos jovens.”
A partir de quinta-feira, os olhos de muitos – incluindo de muitas vítimas – estarão centrados no Vaticano.
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