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domingo, 24 de fevereiro de 2019

Abusos sexuais: o guião do Papa para os trabalhos que se seguem

Os 21 pontos de reflexão propostos pelo Papa aos quase 200 participantes do encontro sobre Protecção dos Menores na Igreja, iniciado quinta-feira, dia 21, e que este domingo termina em Roma com a eucaristia presidida por Francisco, foram um ponto de partida, como o próprio dizia, para o debate dos três dias de trabalhos. Mas, pode dizer-se, também para o muito do que o Papa quer colocar a hierarquia da Igreja a fazer (depois do muito que também já tem sido feito).

Fica um guia de leitura a partir desse texto (seguindo aqui as versões em português traduzidas pela Rádio Renascença e pelo Vatican News) daquelas que se podem apontar como as prioridades que o Papa Francisco pretende para este campo e que se podem considerar como as urgências mais imediatas para a acção da Igreja Católica na matéria. 

  1. AS VÍTIMAS NO CENTRO

“O cálice e hóstia”; ilustração © Cristina Sampaio

Sábado, um jovem chileno que foi vítima de abusos e hoje vive no Kuwait, testemunhou como o que viveu se transformou num “fantasma que os outros não podem ver” mas que o acompanhará por toda a vida. “O que dói mais é a certeza de que ninguém te compreenderá”, afirmou, acrescentando que já não é ele próprio e que ficou “completamente sozinho” com o passar do tempo. “Se me rendesse agora, ou parasse, deixaria que esta injustiça interferisse na minha vida”, concluiu, antes de executar uma peça musical em violino, como conta a Ecclesia.

Oriundo de um dos países onde se registaram alguns dos mais graves casos de abusos, este jovem falou durante a celebração penitencial presidida pelo Papa. Foi uma das vozes que, ao longo dos três dias, trouxe o clamor das vítimas para a sala do sínodo, onde decorriam os trabalhos – na quinta-feira, os 190 participantes (entre os quais 114 presidentes de conferências episcopais) ouviram cinco depoimentos, nos restantes dias ouviram pelo menos um (e a Renascença entrevistou um ex-padre que contava também a sua experiência de vítima, o que o levou a abandonar o ministério, dedicando-se hoje a ajudar outras pessoas na mesma situação.

Já na sexta de manhã, um outro ofendido afirmou: “Quando fui abusado por um padre, a minha mãe Igreja deixou-me sozinho; quando precisei de alguém na Igreja para falar dos meus abusos e da minha solidão todos se esconderam e eu senti-me ainda mais sozinho, sem saber a quem recorrer.”

O silêncio (da instituição diante) dos inocentes
Aos testemunhos escutados desde o primeiro dia, seguia-se sempre um longo silêncio na sala do sínodo, onde decorria o encontro. Cada um dos participantes via-se confrontado com as acusações gravíssimas que ali ouvia, facas aguçadas dirigidas ao coração de uma comunidade cuja missão é proteger os mais frágeis e que, afinal, atentou desde logo contra os seus próprios membros em tantas situações…

Ainda no sábado, um outro testemunho marcou tragicamente os participantes – foi o “momento mais intenso”, disse o padre Federico Lombardi, ex-porta-voz do Papa e moderador do encontro. A mulher, conta também a Ecclesia, relatou a forma como  foi abusada entre os 11 e os 16 anos, como sofreu vários distúrbios depois disso, como teve dificuldades em contruir relações e como as memórias sempre presentes a impediram de amamentar o primeiro filho – situações que seriam todas usadas contra ela, quando o marido quis divorciar-se.

“O abuso cria um dano imediato, mas não é só isso: tem de se conviver com ele para sempre”, afirmou, para acusar a seguir os que, perante tais crimes, “minimizam, escondem, mandam calar ou, ainda pior, não defendem os pequenos, limitando-se com mesquinhez a deslocar os sacerdotes para fazerem mal noutros lugares”.

Não foi só nos três dias do encontro que as vítimas tiveram um lugar central. No guião entregue pelo Papa aos participantes, essas pessoas humilhadas por membros do clero são colocadas no centro, reflectindo uma insistência de Francisco desde há muito – confirmada ainda pelo pedido, aos participantes na cimeira, para que ouvissem a voz das vítimas antes de ir para Roma.

Escutar, escutar, escutar
Logo no ponto 2 do guião, Francisco sugeria a criação de “uma estrutura de audição, composta por pessoas formadas e por peritos, que analisaria em primeira instância os casos das presumíveis vítimas”. No último, o 21º, acrescentava: “É necessário instituir, onde ainda não foi feito, um organismo de fácil acesso para as vítimas que queiram denunciar eventuais crimes. Um organismo que seja autónomo, também em relação à autoridade eclesiástica local e que seja formado por pessoas especializadas (clérigos e leigos), que saibam exprimir a atenção da Igreja, para com os que se consideram ofendidos por comportamentos impróprios por parte dos clérigos.”

A escuta, como dava conta um dos testemunhos citados, é o primeiro bálsamo a colocar na ferida. Mas deve ser feita por quem sabe escutar e como se escuta – e não apenas por quem tem lugares ou funções de responsabilidade. Leigos e especialistas, com autonomia de acção, a fazer esse trabalho, são outro ponto importante, que merecerá adiante uma referência mais explícita.

No quarto ponto, o Papa sugeria ainda a aplicação de “procedimentos compartilhados para o exame das acusações, a protecção das vítimas e o direito de defesa dos acusados”. No oitavo, apontava-se o acompanhamento, protecção e tratamento das vítimas, “oferecendo-lhes todo o apoio necessário para uma recuperação completa”.

É desnecessário recordar a marca indelével, esse “fantasma” que não se vê, que cada uma destas histórias deixa nas pessoas e a dificuldade que alguém tem em falar dela. Por isso, o processo de escuta, protecção, acompanhamento e cura se torna indispensável.

No início do encontro, logo após o discurso inicial do Papa, um dos momentos intensos foi quando o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, arcebispo de Manila, ficou de voz embargada ao dizer que “as feridas de Cristo Ressuscitado carregam a memória do sofrimento de inocentes, mas também a memória da nossa fraqueza e dos nossos pecados”.

  1. MECANISMOS PARA UMA ACÇÃO EFICAZ

Ilustração © Madalena Matoso

Não tem sido nada meiga a forma como o Papa tem falado acerca do tema, pedindo acções concretas aos episcopados do mundo inteiro e ele próprio actuando de forma drástica perante várias situações. Essa atitude vem desde o início do pontificado, em Março de 2013, mas sobretudo desde que escreveu a carta que entregou aos bispos do Chile, em Maio de 2018, e a que dirigiu a todos os católicos, depois da divulgação do relatório do estado da Pensilvânia (Estados Unidos), em Agosto. No início deste encontro no Vaticano, Francisco pediu aos participantes: “Escutemos os gritos dos pequenos que pedem justiça. (…) O povo de Deus olha para nós e espera de nós não simples condenações mas medidas concretas e eficazes; é preciso concretização.”

No guião distribuído, o Papa sugere a criação de estruturas e a adopção de mecanismos tendentes a uma acção eficaz, na linha também do que tem sido a sua forma de agir – de que o último exemplo é a retirada do ministério ao antigo cardeal McCarrick, há nove dias.

Desde logo (pontos 1, 3 e 5), Francisco propunha a elaboração de um “guião prático em que se especificam os passos a cumprir pelas autoridades sempre que surja um novo caso”, o estabelecimento de “critérios para a colaboração entre os bispos e os superiores de ordens religiosas” e a necessidade de “informar as autoridades civis e eclesiásticas superiores, respeitando as normas civis e canónicas” – factor que tem estado ausente dos procedimentos de muitos bispos e que é uma das razões para o encobrimento.

A outro nível, o Papa sugeria (19º ponto) a existência de “códigos de conduta obrigatórios para todos os clérigos, religiosos, funcionários e voluntários para estabelecer os limites apropriados para as relações pessoais”.

No 6º e 7º ponto, Francisco apontava ainda a revisão periódica das normas de protecção de menores “em todas as estruturas” da Igreja, que se devem basear no princípio “da justiça e da caridade”, bem como a existência de “protocolos específicos para tratar acusações contra bispos”.

Mentiras, mesquinhez e encobrimentos
Neste sábado, o cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e presidente da Conferência Episcopal Alemã (CEA), criticou no encontro o facto de “arquivos que poderiam ter documentado as terríveis ações e identificado os responsáveis” terem sido “destruídos ou nem sequer criados” – uma realidade que o estudo da CEA já tinha detectado. “Em vez dos perpetradores, as vítimas é que foram disciplinadas e remetidas ao silêncio”, disse, para acrescentar que “não é a transparência que prejudica a Igreja, mas os actos de abuso cometidos, a falta de transparência ou o encobrimento daí resultante”.

A questão do encobrimento, protagonizada essencialmente por bispos (incluindo cardeais) tornou-se, de facto, muitas vezes, quase tão grave (ou mesmo mais grave) que os abusos propriamente ditos. Era a “mesquinhez” de que falava a mulher vítima italiana que falou no sábado aos participantes, dos que se limitavam a mudar os padres no lugar do xadrez, minimizando, escondendo, mandando calar ou não defendendo os pequenos. Ou seja, colocando o interesse do “bom nome” da instituição acima da verdade e da justiça.

Era ainda o tratar as vítimas como mentirosas, como denunciou um outro chileno no primeiro dia de trabalhos: “A primeira coisa que me fizeram foi tratarem-me como mentiroso, virar-me as costas e dizer-me que eu, e outros, éramos inimigos da Igreja. Isto não acontece só no Chile, mas em todo o mundo, e tem de acabar.”

Neste campo, uma das medidas centrais que o Papa propunha (ponto 15) é a de “decidir que os padres e bispos condenados por abuso sexual de menores abandonem o ministério”. Actualmente, contam-se já três cardeais castigados (McCarrick foi mesmo obrigado a deixar o sacerdócio), além de vários bispos e 848 padres expulsos e outros 2500 condenados a uma vida de reclusão e penitência, no respeito pelo “princípio tradicional da proporcionalidade da punição com o crime cometido”.  

Uma outra proposta neste mesmo âmbito tem a ver com as normas que devem existir para regular as transferências de um seminarista “de um seminário para outro” ou de “padres e religiosos de uma diocese ou congregação para outra”. Ou seja, por vezes há um bispo que não aceita determinado candidato por considerar que ele não tem maturidade ou constitui um risco, mas outro bispo pode aceitá-lo – risco que aumenta com a chamada “crise de vocações”, em que por vezes a vontade de pode contar com mais um padre se sobrepõe à clara imaturidade de muitos candidatos referenciada por professores, padres e outros agentes de formação.

  1. MATURIDADE HUMANA, ESPIRITUAL E PSICOSOCIAL

Ilustração © Madalena Matoso

Para responder ao último problema referido, o Papa sugeria no seu documento duas medidas concretas, explicitadas nos parágrafos 16 e 17 de forma a garantir, por um lado, “que haja programas de formação inicial e contínua para ajudar [os candidatos] a desenvolver a sua maturidade humana, espiritual e psicossexual, bem como as suas relações interpessoais e comportamentos”; e, por outro, “que os candidatos ao sacerdócio e à vida consagrada sejam sujeitos a avaliações psicológicas por parte de peritos qualificados e acreditados”.

Na mesma linha, é necessário “aumentar a consciencialização sobre as causas e consequências do abuso sexual, através de iniciativas de formação permanente de bispos, superiores religiosos, clérigos e agentes de pastoral” (ponto 9) e “preparar percursos de cura pastoral das comunidades feridas pelos abusos e um itinerário penitencial e de recuperação para os culpados (10).

Ninguém pode ficar de fora, na perspectiva de Francisco: nem os responsáveis eclesiásticos, que se deixaram enredar na teia do encobrimento, da mentira, das meias-verdades, da relativização do sucedido; nem as comunidades, profundamente feridas e que deixaram de reconhecer autoridade pastoral aos seus clérigos e bispos, como reconhecia o porta-voz dos bispos chilenos na entrevista já citada ao 7MARGENS; nem os culpados que não podem também ser abandonados à sua sorte por terem praticado crimes (e que, por vezes, também já tinham sido vítimas de abusos).

  1. O CONTRIBUTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Ilustração © Madalena Matoso

Este é outro tema importante em que o Papa – e os seus conselheiros mais importantes nesta matéria – têm insistido: os especialistas, nomeadamente das áreas da psicologia, antropologia e medicina – devem ser chamados a liderar estes processos.

No ponto 13 do seu guião de trabalho, o Papa propõe: “Estabelecer disposições que regulem e facilitem a participação dos peritos leigos nas investigações e nos diferentes graus de juízo dos processos canónicos relacionados com os abusos sexuais e de poder”. No 20º, acrescenta: “Explicar todas as informações e dados sobre o perigo dos abusos e os seus efeitos, como reconhecer sinais de abusos e como relatar casos suspeitos de abuso sexual. Tudo isto deve acontecer em colaboração com pais, professores e as autoridades civis e profissionais.”

O papel de psicólogos, psicanalistas das ciências humanas em geral, e da psicologia, psiquiatria ou sociologia em particular têm levantado muitas resistências da parte de responsáveis da Igreja. Neste sábado, em declarações à Ecclesia, em Roma, o patriarca de Lisboa reconhecia a sua importância: a questão dos abusos é “realmente muito ampla, que toca zonas muito profundas da humanidade que somos e que, às vezes, não são boas, precisam de ser corrigidas, compreendidas e ultrapassadas. É um fenómeno moral, com certeza, mas também psíquico e até psiquiátrico, sociológico, cultural”.

  1. A CULPA (JÁ NÃO) É DO MENSAGEIRO

(O Papa Bento XVI, que tomou várias medidas contra os abusos), “Limpando a porcaria”; Ilustração © Cristina Sampaio

Pode pensar-se que este é um ponto marginal – mas, de facto, não é bem assim. No parágrafo 11, o Papa escrevia: “Consolidar a colaboração com todas as pessoas de boa-vontade e com a comunicação social para poder reconhecer e discernir que casos são verdadeiros e quais os falsos, as acusações da calúnia, evitando rancores e insinuações, rumores e difamação.”

Muitos responsáveis da Igreja Católica continuam a culpar os jornalistas por divulgarem notícias e informações sobre estes casos (ou outros factos, por vezes desagradáveis para eles ou a própria instituição). O discurso sobre a importância e o papel dos jornalistas continua a ser contrariado por uma prática que olha de soslaio, com muita desconfiança, para quem denuncia ou escreve sobre estas realidades.

O Papa já destacara o papel dos jornalistas na revelação destes casos e segunda-feira passada, na apresentação do encontro, o arcebispo Charles Scicluna, arcebispo de Malta e secretário-adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, fez questão de agradecer o papel da imprensa em trazer “à luz do dia as histórias de tantas vítimas”. Para ele, é necessário “quebrar qualquer código de silêncio”, de “negação” ou “encobrimento”, porque “não há lugar no sacerdócio e na vida consagrada” para quem abusa de menores.

Esse agradecimento aos média (além das próprias vítimas) foi secundado pelo porta-voz do Vaticano: “É preciso o compromisso de todos para olhar este monstro nos olhos, se o queremos derrotar”, disse Alessandro Gisotti, que fez questão de destacar o papel dos jornalistas “neste caminho doloroso”, a par da “coragem” das vítimas, para “quebrar o silêncio”.

  1. DIREITOS DOS ACUSADOS
Não poderia faltar, no guião do Papa, o direito dos acusados a defender-se. Há já vários casos relatados um pouco por todo o mundo em que houve pessoas inocentes que foram acusadas. E o risco de uma “caça ás bruxas” existe. Por isso, no ponto 14 das suas sugestões, Francisco recordava uma das regras elementares do direito: “É necessário salvaguardar também o princípio do direito natural e canónico de presunção de inocência até prova da culpa do acusado. Por isso é de evitar que sejam publicadas listas de acusados, também por parte das dioceses, antes de serem investigados e definitivamente condenados.”

  1. A PREVERSÃO DO CLERICALISMO NARCISISTA

“Domingo de Ramos”; Ilustração © Cristina Sampaio

Na carta que entregou aos bispos do Chile, o Papa tinha um parágrafo que olhava muito para lá da questão dos abusos. Esta tragédia será, muitas vezes, o culminar de um processo que radica em causas mais profundas e muito anteriores: “Essa psicologia de elite ou elitista acaba por gerar dinâmicas de divisão, separação, ‘círculos fechados’ que desembocam em espiritualidades narcisistas e autoritárias nas quais, em vez de evangelizar, o importante é sentir-se especial, diferente dos demais, deixando assim em evidência que nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. Messianismo, elitismos, clericalismos são todos sinónimos de perversão no ser eclesial.”

O clericalismo como uma doença ou uma lepra que é preciso erradicar também já foi condenado muitas outras vezes pelo Papa. No primeiro dia do encontro que este domingo termina no Vaticano, o cardeal Ruben Salazar Gomez, arcebispo de Bogotá (Colômbia), dizia que a tragédia dos abusos manifestou “claramente uma mentalidade clerical” que levou padres, bispos e cardeais “a colocar o bem da instituição por cima da dor das vítimas”.

Na entrevista já citada ao 7MARGENS, o porta-voz da Conferência Episcopal do Chile, Jaime Corro, recordava que “a origem do abuso sexual é o exercício abusivo da autoridade e a manipulação de consciência”. Finalmente, na sua intervenção neste sábado, também antes referida, o cardeal Marx disse ainda que o abuso sexual de crianças e jovens é, “em grande medida, devido ao abuso de poder”, acrescentando não há alternativa à prestação de contas e à transparência.

(CONTINUA…)

O arcebispo Scicluna disse numa das conferências de imprensa desta semana que o trabalho da encontro é para continuar já a partir de segunda-feira.

Na missa deste domingo, em Roma, o Papa encerrará o encontro e dirá, na homilia, o que retira como pontos essenciais destes três dias de escuta, reflexão e debate. A limpeza ainda só agora começou.


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