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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

“Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim?”


Acabo de sair do cinema. Fui ver Cafarnaum, de Nadine Labaki (a realizadora de Caramel). Um murro no estômago. Lágrimas me deslizam pela cara numa sensação de dor e raiva. A minha mão, segurando uma caneta, percorre a folha em branco. Pelo menos, palavras posso escrever. A escrita obriga-me a sair de mim. Na minha impotência sei que alguma coisa tem de ser feita.
O filme é passado nos bairros periféricos de Beirute, onde a miséria social e humana vai de par com a fealdade de uma paisagem devastada. A vista, obtida através de um drone, mostra a imensidão dolorosa desses bairros. Ali vivem os “descartados” da sociedade, nas palavras do Papa Francisco.
A câmara incide sobre o quotidiano de uma criança, Zain: um menino-homem de cerca de 12 anos, um lutador que trabalha nas ruas garantindo o pão para si e para seus irmãos mais novos: para sobreviver, rouba, mente, manipula. Cuida da irmã Sahar que é vendida prematuramente em casamento e posteriormente morre de parto, ainda uma criança. Cuida de um bebé de menos de um ano, filho de uma refugiada etíope, a troco de pão e de um tecto. Quando a mulher é apanhada numa rusga e fica na prisão por não ter papéis, é ele que, sozinho, garante a sobrevivência do bebé e de si próprio. A sua capacidade de resolver problemas é absolutamente notável.
Zain, apesar da miséria da sua vida, mantém a capacidade de se indignar, de lutar. Mas é um menino que não ri.
Um momento fulcral e pungente do filme é quando Zain leva os pais a tribunal, culpando-os de o terem trazido ao mundo sem condições para o criar. Na sua convicção e assertividade insiste no direito a não nascer. Àquele menino foi roubada a infância, foi abandonado e violentado, não conhece o direito a brincar nem a viver em segurança. Nem sequer o direito a ir à escola.
Finalmente são dados documentos legais a Zain. Um momento final patético: o fotógrafo quer um sorriso para figurar no cartão de identificação: um pungente sorriso forçado em resposta. Mas talvez haja alguma esperança para Zain. Ele não vai desistir.
Podemos decidir não ver este tipo de filmes para que não percamos o sono. Mas podemos escolher ver para continuarmos desassossegados e convidados a agir. Não haverá muitos meninos Zain entre nós?
Cafarnaumé o grito pungente de uma criança que não desiste de viver. Um crítico chamou-lhe um filme sobre a “pornografia” da pobreza. Detestei a metáfora. Mas as circunstâncias da vida de Zain são obscenas. Há neste filme uma força interpeladora que me lembra a cidade de Cafarnaumda Bíblia, uma das cidades por onde Cristo pregou e peregrinou antes de subir à cruz.
(O título é uma citação de um verso  de Augusto Gil)
Cafarnaum, de Nadine Labaki, é interpretado por Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw e Boluwatife Treasure Bankole
Prémio do júri do Festival de Cannes, 2018; nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro
Teresa Vasconcelos é professora do ensino superior e membro do Movimento Graal de mulheres católicas


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