Na sequência de uma campanha governamental iniciada em 2004, médicos e autoridades sanitárias da Dinamarca saudaram o facto de nesse país (com cerca de 5 milhões de habitantes) e no ano passado terem nascido apenas 18 crianças com trissomia 21. Este número tão reduzido não reflete algum tratamento dessa doença, mas o aborto sistemático das crianças por ela atingidas (e das referidas 18, só 7 nasceram sendo a doença diagnosticada durante a gravidez). A meta a alcançar é a de uma sociedade livre de crianças Down (“Down free”) no ano de 2030, mas estes números suscitam nas autoridades a “esperança” de que essa meta seja atingida mais cedo.
Com a cultura que deste modo se difunde, podemos imaginar como será nulo o apoio (moral e de qualquer outro tipo) que podem esperar os pais e mães dessas poucas crianças nascidas em contraste com tão vigorosa campanha, certamente encarados pela mentalidade comum como socialmente irresponsáveis.
Situações análogas ocorrem, mesmo sem campanhas desse tipo, em muitos outros países, onde mais de 90 por cento das crianças diagnosticadas com tal doença durante a gravidez são vítimas de aborto. O chocante record foi batido pela Islândia, onde não há praticamente crianças com trissomia 21 que tenham escapado ao aborto.
Não me parece algum exagero falar desta situação como de um verdadeiro genocídio («de luva branca» - diria o Papa Francisco). Apesar de a cultura hoje dominante aceitar tranquilamente situações como esta, não me ocorre afronta mais grave à dignidade humana nos dias de hoje.
Parece que, em vários contextos, as consciências estão finalmente a despertar para a particular gravidade da legalização do aborto nessa situação, legalização que acompanhou historicamente as primeiras inovações nesta matéria, tidas por mais moderadas, mas que não deixa de representar um profundo retrocesso moral e civilizacional. É que a gravidade dessa legalização não reside apenas no atentado à vida que o aborto sempre representa, reside também na discriminação em função da deficiência (num tempo que tanto proclama a igualdade e a rejeição da discriminação). Uma discriminação dos mais fracos e vulneráveis. Uma discriminação relativa ao mais básico dos direitos, pressuposto de todos os outros, sem o qual outro tipo de proteção das pessoas com deficiência perde quase todo o seu sentido.
Foram precisamente estes argumentos que serviram de base ao recente acórdão do Tribunal Constitucional polaco que declarou a inconstitucionalidade da legalização do aborto com fundamento na deficiência do feto, situação que ocorre na quase totalidade dos abortos legais praticados nesse país (onde vigora, pois, uma lei bastante restritiva), Esse Tribunal afirmou algo que parece óbvio, mas que nenhum outro Tribunal até hoje havia afirmado.
É conhecida a forte reação de revolta que tal decisão acarretou. Manifestações juntaram multidões que desafiaram as regras de prevenção da pandemia da Covid-19. Muitos manifestantes dirigiram a sua revolta contra a influência da Igreja Católica no país e, nalguns casos, invadiram violentamente e profanaram igrejas e celebrações litúrgicas. Algo de nunca visto na pátria de São João Paulo II, cujas estátuas também foram, em alguns locais, vilipendiadas.
Quem se opõe à decisão do Tribunal Constitucional polaco, reivindica a liberalização do aborto em geral, mas a verdade é que o que está na origem da revolta é, precisamente, a recusa da legalização do aborto com base na deficiência do feto, o aborto eugénico.
Têm sido justamente criticadas política seguidas pelo governo polaco contrárias aos princípios do Estado de Direito, como a da recusa de acolhimento de refugiados baseada na sua religião islâmica. Mas, neste aspeto, um país que nega a discriminação com base na deficiência no que ao fundamental direito à vida diz respeito não será mais fiel ao Estado de Direito do que aqueles que pretendem alcançar a meta de uma sociedade “livre” de crianças “Down”?
Sabemos que a justificação para a legalização do aborto eugénico é uma justificação “piedosa”: o aborto seria um ato de misericórdia que poupa às suas vítimas uma vida infeliz. Mesmo que isso fosse verdade, nunca justificaria que alguém se substituísse a essas vítimas para formular esse juízo. Mas o testemunho de muitas pessoas com o síndrome de Down, e de muitas famílias que as acolhem, revela que essas pessoas são felizes, apesar das suas limitações e da falta de apoios sociais que lhes seriam devidos. Não são testemunhos isolados. São testemunhos corroborados pela investigação científica. Um estudo de 2011, de Brian Skotko, Susan Levine e Richard Goldstein, investigadores de Harvard, Self-perception from people with Down-Syndrome (in ), revela que a esmagadora maioria dessas pessoas declara ser feliz e dá felicidade aos seus familiares.
A insensibilidade e indiferença geradas por esta realidade pode levar-nos a pensar que somos transportados aos tempos da Antiguidade clássica pré-cristã, em que as crianças deficientes eram vítimas de infanticídio ou abandono à nascença. Uma prática justificada por grandes nomes dessa cultura, como Cícero e Séneca, e também presente noutras culturas de várias latitudes. Uma prática cuja rejeição era um sinal que identificava os primeiros cristãos, como indica a célebre Carta a Diogneto. Com essa rejeição, nasceu a civilização cristã e humanista, assente no respeito pela dignidade de toda e qualquer pessoa, que vem marcando desde então, com imperfeições, as nossas sociedades.
É por isso que pode falar-se, a este respeito, em retrocesso moral e civilizacional. Mas este facto revela também como, para além da política legislativa, é urgente a tarefa da nova evangelização.
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