Páginas

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Uniões Civis

Grandes mal-entendidos e polémicas gerou a publicação de partes de uma entrevista do Papa Francisco em que este defendeu alguma forma de cobertura legal de uniões homossexuais. A Secretaria de Estado do Vaticano e a Conferência Episcopal Portuguesa esclareceram que dessas palavras não pode concluir-se alguma mudança da doutrina da Igreja (e também nunca seria uma entrevista como essa a sede própria para tal).

Na verdade, tais declarações foram invocadas para justificar posições que nunca foram as de Jorge Bergoglio ou do Papa Francisco, como a de um editorial do Washington Post favorável à adoção por casais homossexuais, ou a do presidente venezuelano Nicolas Maduro em favor de uma proposta de legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A doutrina da Igreja a este respeito pode ser sintetizada na frase da exortação apostólica Amoris laetitia (do próprio Papa Francisco): «não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família.» (n. 251). Esse desígnio não diz respeito apenas ao sacramento do matrimónio, mas também ao casamento como vínculo natural.

A propósito da discussão sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, no livro que escrevi em parceria com o Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada, Porque Não – Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo (Aletheia, 2010), também abordei a questão do reconhecimento legal de uniões civis homossexuais.

A razão que, nesse livro, como noutros escritos, invoquei contra a legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, não tem a ver com a imposição da moral católica enquanto tal (que não seria admissível num Estado laico), mas com um critério de bem comum: não têm o mesmo relevo social uma união homossexual e um casamento entre um homem e uma mulher. Só em relação a este pode dizer-se que estamos perante a fonte da «célula fundamental da sociedade». Só ele garante a sobrevivência e renovação da sociedade através da geração de novas vidas. E só ele exprime simbolicamente o valor da unidade na diversidade da dualidade sexual: o núcleo fundamental da sociedade é construído com a riqueza que representa essa unidade e colaboração a partir dessa diferença, que também é a mais básica de todas as diferenças sociais.

Em vários países (França, Reino Unido, Alemanha), a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo foi antecedida pelo reconhecimento legal de uniões civis homossexuais, que quase não se distinguiam do casamento (incluindo no que se refere à adoção). Em muitos casos, serviram apenas de preparação para o passo seguinte, que foi o da redefinição do conceito de casamento. Mas não se trata apenas da designação de um instituto jurídico, de não designar como “casamento” um instituto jurídico em tudo a ele idêntico. Trata-se de reconhecer o relevo social que tem o casamento como união entre um homem e uma mulher e que não tem uma união homossexual, diferença que deve refletir-se no plano jurídico (desde logo, no que se refere à filiação).

Porque se verificava a equiparação entre a tais uniões civis homossexuais e o casamento, elas tiveram a oposição dos episcopados dos referidos países. E também a oposição da Congregação para a Doutrina da Fé num documento de 2003, aprovado por São João Paulo II. Mas, como afirmei no livro acima referido, tal não impede que a pessoas que vivem em uniões do mesmo sexo sejam reconhecidos alguns dos direitos de pessoas casadas. Trata-se de uma relação de auxílio mútuo e economia comum a que a lei não deve ser indiferente. É possível fazê-lo sem que se verifique alguma forma de equiparação ao casamento se tais direitos forem também reconhecidos a outras formas de relação de auxílio mútuo e economia comum sem dimensão sexual a que também a lei não deve ser indiferente (entre irmãos, por exemplo).

Nesta linha, pronunciou-se, por exemplo, o cardeal O’Malley, arcebispo de Boston, salientando que as palavras do Papa na referida entrevista (que, na verdade, não entra na análise mais pormenorizada de questões jurídicas) poderão ser assim interpretadas (ver http://cardinalseansblog.org, 23/10/2020).

Pedro Vaz Patto


Sem comentários:

Enviar um comentário