O clero das Dioceses de Évora, Setúbal,
Beja e Algarve, reunido no Hotel Alísios, Albufeira, Algarve, nas Jornadas de
Actualização do Clero, promovidas pelo Instituto Superior de Teologia de Évora,
nos dias 28 a 31 de Janeiro de 2019, subordinadas ao Tema – O homem: caminho
de Cristo e da Igreja - em ambiente de recolhimento, estudo e convívio, com
a colaboração de vários especialistas em diferentes áreas do saber, partilha as
seguintes conclusões:
1. Uma das afirmações que fazemos, quando
observamos os comportamentos humanos e reflectimos sobre eles, é: “o homem está
em crise”. Mas será que é mesmo assim? Estamos seguros de que o homem está em
crise? De que homem estamos a falar? Será que ele se dá conta disso? O homem do
nosso tempo não pensa de todo que está em crise. Pelo contrário, ele pensa que
está muito bem. Eis algumas constatações:
O homem não
sente que está em crise porque, de facto, não pensa nas questões fundamentais
da vida, na questão do sentido da vida, na sua identidade. É necessário que o
homem volte a pensar sobre si próprio admitindo que a ciência, a técnica e a
cultura digital conduzem, por vezes, ao individualismo, relativismo e
narcisismo na relação consigo mesmo, com o próprio corpo, com os outros e com o
mundo. Perdeu-se o sentido do passado, da tradição e da transmissão e,
consequentemente, o futuro fica obscurecido. Não se presta atenção à
continuidade histórica, sobrevaloriza-se o presente e perde-se o sentido de
pertença.
2. Perante esta cultura, a
evangelização deverá, ela sim, “colocar o homem em crise” provocando nele o
desejo de encontrar o sentido profundo da sua vida. A linguagem, entendida num
sentido amplo que abrange diversos processos de comunicação, como a palavra, os
gestos, as expressões e os estilos de vida, deve merecer uma atenção especial.
A internet não é apenas um instrumento de comunicação, é uma cultura. O anúncio
do Evangelho deverá passar pela apresentação de conteúdos breves com uma
linguagem incisiva e compreensível; pela repetibilidade, para fortalecer a
memória; pelo encontro interpessoal; pelo cuidado em preparar as celebrações,
as homilias e a catequese; por dar inteligência à peregrinação; enfim, por
recuperar o entusiasmo missionário. Neste contexto cultural ainda continua a
fazer sentido a pergunta sobre Deus escondida no mais profundo do coração de
cada pessoa. Os chamados preambula fidei, nas suas expressões de beleza
na arte, na música, na arquitectura ou na literatura, são outros espaços onde o
Evangelho pode e deve situar-se. De facto, procura-se uma antropologia que
abranja todas as dimensões do homem.
3. O relato bíblico apresenta a
criação do ser humano (´adam) como uma “prothesis” (projecto)
cuja concretização vai acontecendo não por identificação mas por diferenciação.
O homem descobre-se na sua identidade no confronto que lhe revela os seus
limites e diferença em relação a Deus, à terra e à criação, ao outro e ao sexo.
Ferida
na sua liberdade e dignidade pelo pecado, a dignidade humana é, em Cristo, não
só reconstruída de acordo com a prothesis original, como recebe n`Ele a
verdadeira plenitude da humanização: a criatura torna-se, por pura graça,
“filho no Filho”, participante da própria vida divina.
4. A mudança dos tempos trouxe, com frequência,
mudanças na forma como o humano foi sendo interpretado e projectado. Cada época
ou novo contexto privilegiou os seus próprios aspectos constitutivos do homem.
Mas para lá de todos os matizes entre as várias antropologias, algo poderá ser
reconhecido: a questão do homem foi merecendo cada vez mais atenção e
centralidade. Este processo, perceptível ao nível da cultura e da filosofia,
também não ficou às portas da teologia e da vida eclesial. Pelo contrário, o homem
foi declarado o “caminho da Igreja” (João Paulo II) e esta “peritíssima” (Paulo
VI) no que a ele diz respeito. Todavia, para lá das antropologias que mudam, há
ainda que perguntar se não será também o homem que muda. As ciências e a
tecnologia, com as transformações do humano que elas possibilitam e
multiplicam, tornam esta questão de sempre numa das grandes questões do futuro.
Como sumário
desse complexo jogo de antropologias, poder-se-á falar de uma anatomia
simbólica do humano: o homem é cérebro, é “homo sapiens” (figura que condensa
todas as antropologias que exaltam a razão ou o conhecimento como o essencial
do humano); o homem é coração, é “homo sentimentalis” (expressão de todas as
visões do homem que lhe exaltam a afectividade, a emoção e a sensação); o homem
é mão, é “homo faber” (capaz de fazer, produzir, inventar); o homem é pé, é “homo
viator” (constitutivamente dinâmico e peregrino, no espaço, no tempo, e
perfectível em qualquer das suas dimensões); o homem é garganta e língua, é “homo
communicans” (frequentador e artesão da palavra, a linguagem faz o humano); o homem
é pulmão, é “homo spiritualis” (ser inspirado e transcendente, aberto ao que
está para lá dele próprio ao ponto de poder ser divinizado).
5.
A chamada “ideologia do género”, tão difundida nos nossos dias, pode ser
considerada a terceira ideologia, a seguir ao comunismo e ao fascismo. Não é,
como pretendem alguns dos seus defensores, uma questão sexual; é uma ideologia,
um poder que tende a influenciar a ordem social. Um dos seus métodos é a
manipulação da linguagem, a negação da natureza e da realidade, a destruição da
família, assente numa antropologia dualista em que a condição física é
irrelevante e o que é determinante é o cultural. Não se é homem ou mulher pela
natureza mas pela construção cultural da sociedade em que se está inserido. Em
nome da “igualdade de género”, quer dizer, de sexo (porque este é apenas um
exemplo da manipulação da linguagem e da semântica), perde-se a
complementaridade e esvazia-se a dignidade da pessoa humana.
6.
Como compreender o homem, ao mesmo tempo sujeito e objecto, nos diversos
contextos históricos, culturais, sociais e religiosos? A antropologia bíblica e
cristã procura compreendê-lo a partir do futuro, da escatologia, da convicção
de que há outra vida, que é fruto desta e que se constrói na relação com os
outros, com a criação e com Deus.
As novas circunstâncias culturais e sociais, apesar das
roturas e das crises que provocam, são também desafios para o testemunho do
Evangelho. Fora do âmbito eclesial há pessoas de boa vontade, crentes e não
crentes, gente envolvida nas causas sociais, na educação, no mundo da saúde, que
procura respostas para a complexidade dos problemas que se colocam, e em quem a
Igreja pode encontrar interlocutores para responder à questão do sentido da
vida.
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